As cartas anónimas podiam vir acompanhadas de imagens pornográficas e desenhos de órgãos sexuais, recortes que facilmente se conseguiam num qualquer canto de Berlim. Foram despachadas mais de 200. A inquietação começou por ser vivida em privado mas com o tempo os rumores sobre o que se passara em Grunewald avolumaram-se. Para isso bastava o contributo dos mensageiros, que iam disseminando o conteúdo pela cidade. Corria já 1892 quando alguns dos visados decidiram entregar as cartas à polícia, ainda que de forma auto censurada, tentando deslindar o autor. Uma conclusão era imediata: a profusão de pormenores e informação privilegiada indicava que o responsável pelas missivas só poderia ter estado também presente nas polémicas orgias no castelo de caça e conhecer bastante bem os envolvidos.
O caso incendiou a corte de Wilhelm II e o último imperador lançou uma investigação para apurar a origem do escândalo. A culpa recaiu sobre o mestre imperial de cerimónias, Leberechte von Kotze, uma presa fácil dado a sua natureza faladora e sarcasmo pelos quais era conhecido no círculo próximo. A impopularidade devia-se ainda ao facto de ser considerado demasiado feminino, fosse pela inclinação para o boato ou pelas roupas estridentes. Kotze começou por ser protegido por Wilhelm II mas em 17 de junho de 1894 a polícia secreta confiscou elementos na sua posse que supostamente o incriminavam, condenando-o à prisão. Sem capacidade de fundamentar a suspeita, a polícia haveria de libertar Leberechte von Kotze uns dias depois.
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“Gradualmente, as circunstâncias que conduziram à detenção do barão Kotze tornaram-se propriedade pública, e as pessoas em casa e no exterior tomaram consciência, pela primeira vez, da existência de um escândalo que durante 24 meses tinha agarrado o tribunal e a sociedade pelos ouvidos, e que tinha levado cada homem e mulher a considerar com suspeita não meramente os seus conhecidos, mas até mesmo seus amigos mais íntimos e parentes mais próximos. Ninguém, com exceção do imperador, imperatriz, e a viúva do Imperador Frederick, pode dizer ter ficado totalmente isento desta reflexão sobre a sua honra”, lê-se na obra “The Secret Memoirs of the Courts of Europe: William II, Germany; Francis Joseph, Austria-Hungary, Volume I, da Marquesa de Fontenoy (2004), o pseudónimo do colunista inglês Frederick Cunliffe-Owen (1855 – 1926).
Em qualquer dos casos, o escândalo de Grunewald já garantira outro batismo para a posteridade: é conhecido até hoje como “o caso Kotze”, porque os seus efeitos foram além de uma detenção. Apesar do desfecho judicial, o chamado Círculo de Hohenau-Schrader, cujos nomes incluíam Friedrich von Hohenau e Karl von Schrader, que haviam estado no castelo, empenhou-se a investigar por conta própria. Quanto a Von Kotze, fez questão de tirar satisfações junto dos seus acusadores, que dizia terem-no traído. O embate arrastou-se até 1895, quando decidiu medir forças num duelo contra von Schrader, do qual ambos saíram ilesos. Num segundo embate, contra Hugo von Reischach, von Kotze foi ferido na coxa e levado para o hospital. Wilhelm II enviou-lhe um ramo de flores em forma de ovo de Páscoa em sinal de reconciliação. Chegados a 1896, dá-se um novo duelo contra von Schrader, que acabou por ser morto por von Kotze. Um tribunal militar condenou Leberechte a dois anos e três meses de prisão por causa de “matar numa luta a dois”. Após alguns meses de detenção na fortaleza de Glatz foi perdoado pelo imperador. A decisão atirou sobre Wilhelm II a crítica generalizada, não só por ter encorajado os embates como por ter poupado a vida de Kotze.
Leberechte von Kotze, um dos principais afetados pelo escândalo
Os duelos também causaram uma grande agitação entre os populares, que se aglomeravam em Potsdam e outros pontos onde se disparavam as balas. A imprensa criticou fortemente o comportamento da sociedade cortesã, alegando que manchava a reputação da família real. O imperador terá mesmo proibido que as cerimónias fúnebres de von Schrader fossem públicas, a fim de evitar mais atenção. Mas o facto é que as proporções atingidas eram motivo de nota nas mais conhecidas publicações, mesmo além fronteiras. No Reino Unido, a revista Spectator reportava os acontecimentos na capital alemã. “O partido da corte, com o Imperador no seu centro, é acusado de agir com grande “barbárie”. Herr von Kotze foi, aparentemente, suspeito de encaminhar libélulas obscenas para várias grandes senhoras, foi julgado na câmara por um Tribunal de Honra, mas foi absolvido (…) A Corte Imperial, no entanto, sustentou que Herr von Kotze era obrigado a desafiar todos os que o traduziram erradamente. Lutou num duelo sem resultados, e depois desafiou Herr von Schrader, um membro sénior da corte do imperador Frederik. Acertou-se que este combate devia ser travado com pistolas em dez passos, e continuar até que uma das partes ficasse “incapacitada”. Herr von Schrader foi baleado nos pulmões, e morreu em grande agonia, pedindo à sua família para não vingar a sua morte. Herr von Kotze recebeu os parabéns do Imperador, mas os Liberais estavam furiosos, afirmando que ele foi praticamente instado a lutar, e que o Imperador deveria ser o último homem no seu domínio a sancionar violações da lei. (…) O Imperador não pode enviar a opinião pública para uma fortaleza.”, sentenciam.
Como resultado dos acontecimentos, Kotze viu o casamento fragmentar-se e isolou-se na sua propriedade em Schreiberhau, na fronteira entre a Polónia e a República Checa. Os restantes elementos do grupo dos 15 de Grunewald não se livraram de outras atribulações. Depois do caso Kotze, Frederick de Hohenau viu-se envolvido naquele que chegou a ser descrito à época como “o maior escândalo homossexual de sempre”. O caso Eulenburg assumiu-se como controvérsia pública em torno de uma série de julgamentos marciais e civis sobre acusações de conduta homossexual e difamação entre membros destacados do gabinete do kaiser Wilhelm II, durante os anos de 1907 e 1909. As acusações foram levantadas pelo jornalista Maximilian Harden, que visava o amigo íntimo do kaiser, Philipp, Príncipe de Eulenburg, e o General Kuno von Moltke. O caso ganhou proporções superiores, ao ponto de se ter convencionado a expressão “A mesa redonda Liebenberg “, que se referia ao círculo gay em redor do líder máximo. Quanto à mulher de Frederick, Charlotte von der Decken, as descrições das suas façanhas no famoso castelo chegavam e sobravam para ensombrar o seu historial e futuro.
Frederick de Hohenau e a então noiva Charlotte von der Decken, em 1880
Uma das mais atacadas, reza a história que o seu marido era abertamente gay. A vida amorosa da duquesa de Hohenau terá incluído ligações com o futuro chanceler Max von Baden, bem como Herbert von Bismarck, então secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros. O escritor das viperinas cartas também feria a reputação do príncipe Aribert von Anhalt, acusado de manter relações com outros homens, e de Alide von Schrader, pelos seus casos lésbicos. O príncipe Frederick Leopold da Prússia, primo e cunhado do kaiser, seria outro dos nomes que passou por Grunewald.
Em 1996, o historiador alemão Tobias C. Bringmann investigou todos os contornos destes anos quentes. Também o historiador inglês John C. G. Röhl se dedicou a uma grande biografia de Wilhelm II, aprofundando o caso Kotze. Mas de evidência em evidência há dúvidas que subsistem até hoje. Ao fim de todos estes anos, nunca se concluiu quem teria sido o autor das cartas, e por que razões terá decidido semear o caos. Presume-se que os pecados ocultos, as animosidades entre os nobres, e ainda os ciúmes, o mal-estar e a inveja, tenham concorrido para este desfecho na corte imperial.
Em 2010, o trabalho do historiador berlinense Wolfgang Wippermann (1945-2021), que lançaria mesmo a obra “Escândalo em Grunewald”, apontou e reforçou uma das vias mais seguidas. Os indícios apontam de forma insistente para a princesa Charlotte, irmã do imperador. Desde logo porque fora ela própria a anfitriã das festas, acreditando-se mesmo que enviaria os convites de forma premeditada, atraindo os convidados para uma armadilha.
Imagem de uma das cartas remetida, preservada nos arquivos secretos da Prússia em Berlim e trabalhada pelo historiador Wolfgang Wippermann
Criança difícil, Vitória Isabel Augusta Carlota da Prússia (1860–1919) tinha uma biografia que se ajustava a este perfil. Foi a duquesa-consorte de Saxe-Meiningen de 1914 até o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918 como esposa do duque Bernardo III, com quem se se casou aos 16 anos, depois de fugir de casa. Era a segunda filha, primeira menina, do imperador Frederico III da Alemanha e neta mais velha da rainha Vitória do Reino Unido. À medida que foi crescendo, Charlotte desenvolveu um gosto especial por espalhar rumores e causar problemas. A sua personalidade excêntrica contrastava com a fragilidade do marido, e os níveis de frivolidade e vida extravagante seguida durante o reinado do irmão Wilhelm em tudo se alinhavam com a trama das cartas. Durante este escândalo, aliás, Charlotte chegou a perder o seu diário, que continha segredos da família e opiniões criticas sobre muitos dos envolvidos no enredo Kotze. O volume chegou à posse do imperador, que nunca perdoou a irmã pelo conteúdo. A imagem da monarquia voltava a ser beliscada e a princesa terminaria os seus dias entre novas disputas amorosas e um exílio forçado.
A investigação de Wippermann baseou-se no acesso aos registos policiais descobertos nos arquivos secretos da Prússia em Berlim. Muitos destes dados permitiam reconstruir os acontecimentos eróticos de um grupo de aristocratas e oficiais da corte – o que começou como uma festa sexual terminou com uma série de duelos sangrentos. O conjunto de documentos confirmava também que a predileção pelos encontros de swing e orgias noite dentro ia além desse ano de 1891, sendo prática recorrente.
A certo ponto, alguns historiadores apontaram ainda para uma segunda hipótese: o duque Ernest Gunther de Schleswig-Holstein, cunhado de Wilhelm II, irmão da mulher deste, Dona. Ernesto teria contado com a ajuda da sua amante para forjar todo o esquema de cartas.
Ernest Gunther de Schleswig-Holstein
Se a bebida, as danças, e as sessões desenfreadas culminaram no livro “Scandal in Hunting Lodge Grunewald”, que analisou as 246 cartas, em última instância o autor acreditava que o quer que tivesse acontecido naquela noite naquele castelo, não poderia ser assim tão horrendo — caso contrário, os intervenientes jamais teriam ido à polícia. Wippermann defendia mesmo que, apesar do choque, o encadeado de acontecimentos acaba por mostrar “como os conceitos e comportamentos gerais de honra, masculinidade e sexo estavam em processo de mudança”.
De qualquer das formas, poucas dúvidas sobram de que o incidente em Grunewald foi um dos mais importantes escândalos reais daquele tempo, já que deixou literalmente a nu a vida privada da aristocracia germânica, estilhaçando a cartilha puritana. O caso teve ecos até nos EUA. Em 9 de julho de 1894, o The New York Times reportava a queda em desgraça da corte do imperador, vexado pelos acontecimentos. Em 2001, a descoberta de umas outras cartas no interior de um cofre mostrava que a opacidade e a vida dupla não eram de todo uma novidade na corte do kaiser – a correspondência provava que o próprio imperador fora chantageado por uma prostituta com quem mantinha práticas sado-masoquistas.
Quanto a Grunewald, este refúgio de caça é hoje o mais antigo e conservado palácio nos arredores da capital alemã, tendo um carácter expositivo e museológico. As suas raízes remontam pelo menos ao século XVI. Em 1542, Joachim II de Brandenburg investiu na sua edificação, para aqui poder viver ao longo de vários anos com a sua amante, apostando no estilo renascentista e no traço de Caspar Theiss. As feições barrocas entraram em cena a partir de 1699, graças a Friedrich Wilhelm, o Rei Friedrich I da Prússia, que atualizou as decorações nos tetos e as lareiras. O edifício perdeu fulgor e relevo durante os reinados de Frederick O Grande e o sucessor Friedrich Wilhelm II, já que os Hohenzollerns não eram grande adeptos da caça. Foi batizado com o atual nome em 1800, e só a partir da década de 20 recuperou protagonismo, mas o boom absoluto deu-se em 1891, quando se converteu em templo de prazer.