United Nations Photo / Flickr

Mulheres sudanesas num campo de refugiados em El Fasher, no norte do Darfur

Enquanto foca a sua atenção na mortandade da guerra na Ucrânia e nos pelo menos 67 mil mortos no que a ONU já considerou ser o genocídio em Gaza, o Mundo vira as costas à guerra no Sudão. E nem Donald Trump, que gosta de uma boa foto na pose de “pacificador”, parece estar interessado em acabar com ela.

A Casa Branca aprecia acordos rápidos e uma boa oportunidade de tirar uma fotografia para o álbum de recordações de Donald Trump na sua demanda pelo Nobel da Paz.

Mas não há aparentemente solução simples — nem interesse ou vontade — de pôr fim à guerra no Sudão, que, ao contrário das que decorrem no Médio Oriente ou no leste da Europa, não dá boas manchetes nos telejornais nem posts populares nas redes sociais. Não é um conflito sexy.

O mundo tem conhecimento da tragédia de El Fashir há mais de um ano. A cidade era o último reduto das forças armadas sudanesas na região ocidental de Darfur, praticamente dominada pelas Forças de Apoio Rápido (RSF, força paramilitar do governo do Sudão, desde que a devastadora guerra civil entre as duas facções rivais eclodiu em 2023.

Durante dezoito meses, os habitantes de El Fashir, outrora uma capital regional com mais de um milhão de pessoas, suportaram um cerco extenuante, pontuado por massacres e outras atrocidades perpetradas pelos combatentes das RSF.

Nenhuma ajuda humanitária conseguiu entrar, e os atacantes isolaram a cidade. Fome generalizada atingiu as comunidades locais, presas dentro das muralhas e nos campos de deslocados nas imediações, realça o colunista de assuntos internacionais Ishaan Tharoor num artigo no The Washington Post.

A população sobreviveu à base de ração animal, ervas daninhas e cascas de amendoim. Os desesperados apelos dos responsáveis das Nações Unidas à comunidade internacional caíram em saco roto. E não houve iniciativas de apoio e solidariedade, nem protestos, da sociedade civil por esse Mundo fora.

Entretanto, na semana passada, a já calamitosa situação em El Fashir deu uma reviravolta ainda mais aterradora. As unidades das RSF romperam as defesas e tomaram a cidade, provocando a fuga em pânico dos poucos civis famintos que ainda restavam.

As milícias vitoriosas, maioritariamente de etnia árabe, lançaram-se numa onda de assassinatos contra a população local não árabe.

Esta violência decalca as matanças genocidas levadas a cabo pelos janjaweed, os antecessores das RS, no Darfur há duas décadas. Testemunhas relataram inúmeros casos de execuções sumárias, violações e outros abusos — que o Mundo, então como agora, ignorou.

Esta nova vaga de brutalidade segue-se às campanhas anteriores das RSF noutras partes do Darfur, que levaram a administração de Joe Biden, já na reta final do mandato, a declarar que o grupo era culpado de atos de genocídio.

Esta semana, o líder das RSF, general Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido pelo nome de guerra Hemedti, procurou tranquilizar os observadores internacionais, afirmando que as suas forças iriam investigar as alegações de abusos.

Mas as suas garantias têm pouco valor: muitos analistas veem nele precisamente o homem com mais sangue tem nas mãos.

Na quinta-feira, Tom Fletcher, principal responsável humanitário das Nações Unidas, deu a conhecer aos embaixadores no Conselho de Segurança da ONU o “inferno ainda mais negro” em que El Fashir mergulhou.

Mulheres e raparigas estão a ser violadas, pessoas estão a ser mutiladas e mortas, com total impunidade”, afirmou, descrevendo os relatos que conseguiram atravessar o apagão das telecomunicações que afeta o país devastado pela guerra. “Não conseguimos ouvir os gritos, mas, enquanto aqui estamos sentados, o horror continua”.

À sombra da miséria sudanesa, o presidente Donald Trump tem feito notoriamente pouco. Gosta de se apresentar como o maior pacificador do mundo, reivindicando o mérito de resolver conflitos que, em alguns casos, ainda continuam ou nunca chegaram a existir.

Mas pôr fim à maior catástrofe humanitária do mundo não tem sido uma prioridade da administração Trump.

Não há solução simples para terminar a guerra no Sudão. As duas forças rivais — o exército sudanês, comandado pelo general Abdel-Fattah Burhan, e as RSF de Hemedti — estão entrincheiradas nos seus feudos e contam com o apoio de uma teia de potências estrangeiras.

O primeiro recebe ajuda de países como o Egito e o Irão, enquanto as RSF, que perderam em março o controlo da capital, Cartum, foram reforçadas com carregamentos de armas provenientes dos Emirados Árabes Unidos (EAU).

A Turquia, a Rússia e até a Ucrânia também desempenharam papéis importantes no fornecimento de material bélico às duas partes em conflito. Entretanto, também a Arábia Saudita e o Qatar mantêm amplos interesses na região.

“A guerra já teria terminado se não fossem os Emirados Árabes Unidos”, afirmou Cameron Hudson, antigo chefe de gabinete de vários enviados presidenciais dos EUA para o Sudão, ao Wall Street Journal . “A única coisa que mantém as RSF nesta guerra é a enorme quantidade de apoio militar que recebem dos emirados”.

Vários analistas acreditam que Trump poderia exercer mais pressão sobre os EAU, monarquia com a qual mantém laços próximos. Mas pouca esperança há de que seja viável um “acordo artístico” à moda de Trump no Sudão.

Para uma Casa Branca que aprecia acordos rápidos e sessões fotográficas, tal esforço parece improvável, diz Ishaan Tharoor. E assim continua a desenrolar-se uma tragédia de enormes proporções, que já fez mais de 150 mil mortos e desalojou milhões de sudaneses.

Os EUA não são aqui uma potência hegemónica, mas um interveniente secundário num campo repleto de potências médias ambiciosas”, observa o analista sudanês Elfadil Ibrahim.

Segundo Ibrahim, pôr fim à guerra exigiria “um envolvimento sustentado e a disposição para exercer verdadeira pressão sobre os patrocinadores externos, bem como um compromisso a longo prazo com um processo político genuinamente inclusivo”.

E talvez mais atenção do Mundo, mais preocupação dos media em cobrir o devastador conflito que há anos arrasa o Sudão, mais protestos nas ruas e nas redes sociais. Porém, há “conteúdo sensível” mais sexy do que o que nem sequer nos chega do Sudão.

Já aqui dissemos que os uigures tinham inveja dos ucranianos. Provavelmente, os sudaneses têm todas as razões para ter inveja dos palestinianos, dos ucranianos, e talvez até também dos uigures.


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