E que mais lhe tira o sono?
A outra coisa que me tira o sono são as stablecoins. Em geral, sou favorável às criptomoedas — não tenho grandes problemas em relação à bitcoin, mas a bitcoin é, digamos, um ativo simples, “baunilha”. É criado e pronto; não há alavancagem, pelo menos dentro da própria bitcoin. Pode colapsar, claro, mas uma bitcoin vale, em dólares, aquilo que as pessoas estão dispostas a pagar por ela. A bitcoin não tem valor intrínseco — tal como o nosso dinheiro também não tem, nem o dólar. Uma moeda fiduciária não tem valor intrínseco; o seu valor vem apenas da confiança que depositamos nela. Se decidirmos deixar de confiar no dólar, o dólar deixa de ter valor. Mas, enquanto houver confiança, o dólar tem valor.
As stablecoins são uma coisa diferente?
Sim, o principal perigo são as stablecoins. Porque, ao contrário da bitcoin, as stablecoins são instrumentos financeiros que estão efetivamente garantidos por um ativo. No caso dos EUA, esse ativo são os títulos do Tesouro — ou seja, são obrigações, dívida. O que irá acontecerá é que a emissão de stablecoins irá permitir ao Governo norte-americano contrair ainda mais dívida. E isso é muito semelhante ao que aconteceu com os CDO [os produtos complexos que geraram a crise do subprime] durante a crise financeira. Os CDO e os títulos garantidos por hipotecas (mortgage-backed securities) permitiram que os bancos americanos contraíssem muito mais dívida do que seria possível de outra forma. Foi assim que todo o esquema funcionou: os bancos emitiram dívida com base em hipotecas insustentáveis, transformaram-nas em pacotes de dívida, venderam-nos como títulos com classificação AAA, as pessoas acreditaram que eram seguros — e depois tudo implodiu.
Pode acontecer uma coisa parecida agora?
Penso que sim, que algo semelhante pode acontecer com as stablecoins. Elas poderão originar uma crise da dívida nos EUA e, se esses instrumentos colapsarem, poderá ser ainda pior do que a crise financeira global.
O que são “stablecoins” e porque podem ser tão perigosas, segundo Wolfgang Munchau
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“Em termos simples, uma stablecoin é basicamente um direito sobre um dólar. É uma ‘moeda’ que se pode trocar por um dólar. Compra-se a moeda, e ela é equivalente a um dólar — mas não é um dólar real. Não é algo que, provavelmente, consiga usar numa loja, mas pode trocá-la por um dólar, e a empresa que emite a stablecoin entrega-lhe esse dólar”, explica Wolfgang Munchau.
Quando você compra a moeda, a empresa emite a stablecoin. O dinheiro que a empresa recebe é usado para comprar títulos do Tesouro dos EUA, obrigações americanas, pelo mesmo valor que pagou. Por exemplo, se comprar 10 moedas, a empresa pega nos 10 dólares e compra títulos do Tesouro. A empresa recebe os juros desses títulos — não você. Se forem 3% ao ano, você não recebe nada, apenas tem o direito sobre aquele dinheiro.
O problema, diz Munchau, é que “isto é uma forma muito lucrativa para a empresa ganhar dinheiro e permite ao governo dos EUA emitir mais dívida, porque consegue ‘vender’ essa dívida a pessoas comuns”.
“Normalmente, a maioria das pessoas comuns não comprariam dívida do Tesouro, mas comprar essas moedas é fácil. Cada moeda representa dívida dos EUA, e se muita gente comprar, o país emite cada vez mais dívida”, afirma, acrescentando que “se atualmente a dívida é de 100% do PIB, pode subir para 200%, 300%, 400% — rapidamente — se as pessoas continuarem a ver isto como uma fonte de dinheiro fácil”.
A dada altura, “como em todas as crises da dívida, o esquema entra em colapso”. “Podemos falar em stablecoins, pode chamar-se subprime, pode dar-se o nome que se quiser. No fundo, é sempre uma forma de esconder empréstimos”.
No fim, podemos pagar ou não a dívida, mas a realidade subjacente não muda. Nenhum truque financeiro consegue esconder isso. Esta é a lição de todas as crises da dívida: acabamos sempre por regressar à realidade subjacente”, avisa.
Nos mercados de ações não vê os mesmos riscos? Há quem fale numa “bolha” nas ações…
Não, as ações são muito diferentes. As bolhas acionistas nunca são iguais umas às outras, mas as crises da dívida são sempre iguais. E, com base nisso, o que eu receio é que haja um colapso massivo global, por causa da dívida. No fundo, falar em excesso de dívida e de stablecoins é falar de duas coisas que estão ligadas – são maneiras de acumular mais dívida do que deveríamos acumular. E já o fizemos. Referiu que há esse debate em Portugal, sobre abrandar o ritmo de redução de dívida: eu seria contra isso, porque estamos perante uma crise enorme que se avizinha. Será uma crise muito cara para muitos países e para a economia mundial, mas especialmente para os países que enfrentarem essas crises de dívida. Acredito que isso acelerará o declínio dos EUA na hierarquia global de poder.
Acha que os decisores políticos dos EUA têm um plano deliberado, de má fé, de usar as stablecoins? Quero dizer, será uma espécie de manobra maquiavélica para aumentar a sua dívida, ou torná-la mais disseminada, arriscando provocar o colapso dos sistemas financeiros do resto do mundo?
Bem, quando fala em má-fé… Eles, na verdade, provavelmente não veem as coisas assim. Não é como um assaltante de banco que sabe que está a assaltar um banco. É mais como um assaltante que pensa que não está a assaltar um banco… mas está. Penso que há aqui um certo grau de ilusão. As pessoas ficam fascinadas — lembro-me do exemplo da crise subprime: nem todos os envolvidos eram criminosos. Muitas pessoas acreditavam sinceramente nos disparates que estavam a dizer. Pensavam que se tratava de um instrumento financeiro inovador e “inofensivo”.
Isso é o que pensa a administração Trump?
Acredito que, na administração Trump, há pessoas inteligentes. Mas há outras menos inteligentes que, provavelmente, pensam: “isto é fantástico, descobrimos algo novo, somos modernos”. Por isso, não creio que haja má-fé, mas haverá certamente consequências negativas.
BCE avança no “euro digital”, que pode começar a ser emitido a partir de 2029
Poderá o “euro digital” ser uma resposta adequada a esta ameaça?
Sim, poderia ser, mas apenas se fosse dinheiro “real”. E não é isso que vai acontecer. Para que o euro digital seja bem sucedido, precisa de ser emitido diretamente pelo BCE, e não através do sistema bancário. Mas na Europa, tudo passa sempre pelo sistema bancário. Mas se fosse emitido diretamente, os bancos perderiam muito dinheiro, porque as pessoas poderiam aceder ao seu dinheiro sem passar pelos bancos. Na minha opinião, isso seria positivo. Acho mesmo que precisamos de falir uma grande parte do sistema bancário europeu para conseguirmos reformar a nossa economia – porque o que devíamos ter era mais e melhores mercados de capitais. O euro digital precisa de ser livre, sem restrições artificiais.
Isso não vai acontecer, na sua opinião, presumo…
O problema é que tenho a certeza de que o Parlamento Europeu vai regular isto, o dinheiro digital que criarmos terá limites de utilização: limites de transações, de gastos por dia, etc. Já as stablecoins, em contraste, não terão esses limites. Por isso, as pessoas irão preferir usar stablecoins, porque são “dinheiro melhor”. Vão usá-las, por exemplo, para fazer as suas compras. Mas ao comprá-las estarão, indiretamente, a comprar dívida dos EUA e, em troca, a receber uma moeda de transação que o nosso euro digital, cheio de limites, nunca será.
A Europa ainda vai a tempo de aumentar a adoção da Inteligência Artificial (IA)? Qual é a sua opinião sobre o potencial desta tecnologia?
A Europa passou ao lado, claramente, da primeira e da segunda fases de desenvolvimento da IA. Mas ainda é possível aumentar a implementação da IA na Europa — e é isso que eu recomendaria. Mas, para implementar a IA de forma eficaz seria necessário eliminar, e não apenas reformar, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), e também eliminar a regulamentação de IA.
Porquê?
Porque estas regras foram desenhadas mais para dificultar os negócios de IA do que para protegê-los. Precisamos de repensar toda a estratégia digital. Não acho que, nesta viagem, devamos tentar “ultrapassar” a China e os EUA — não é assim que eu vejo as coisas. O que a IA faz para quem a utiliza é aumentar dramaticamente a produtividade desses países. Será a primeira invenção tecnológica das nossas vidas com impacto mensurável na produtividade — algo que o computador, por si só, não conseguiu. Pode gerar taxas de crescimento enormes nos EUA e na China, no lado da produtividade. Mas a Europa não vai beneficiar disso, porque não está a usar a IA de forma inteligente.