Em 1938, Vinicius de Moraes (1913-1980) havia publicado os livros de poemas “O caminho para a distância” (1933), “Forma e exegese” (1935) e “Ariana, a mulher” (1936), e teve algumas músicas gravadas, a exemplo das composições com os Irmãos Tapajós “O beijo que você não quis dar”, “Canção da noite” e “Canção para alguém”. Ainda estava longe de iniciar a carreira no Itamaraty, ser consagrado como o Poetinha ou de mudar os rumos da música brasileira ao emprestar a pena às melodias de Tom Jobim, numa das maiores parcerias da História. Ainda assim, o poeta de 25 anos ganhou, na época, um retrato do amigo Candido Portinari, de 34 anos, já considerado à época um dos principais representantes da segunda geração do modernismo.
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A tela, em tons de ocre, verde, rosa, preto e azul, mostra o jovem com os cabelos escuros caídos sobre a testa, a silhueta alongada e os olhos esverdeados retratados sem a íris. De dimensões médias, de 56 cm x 46,5 cm, a obra pode ser facilmente carregada sob o braço, o que, segundo o biógrafo José Castello, era exatamente o que fazia o Poetinha ao terminar cada um de seus casamentos.
Vinicius de Moares e Candido Portinari — Foto: Acervo Projeto Portinari
Entre os mais de 300 itens da mostra “Vinicius de Moraes — Por toda a minha vida”, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até fevereiro, com curadoria de Helena Severo e Eucanaã Ferraz, a tela é a representação da amizade entre Vinicius e Portinari, marcada por intensa correspondência até a morte do pintor, em 1962, aos 58 anos, ocasião em que o escritor e compositor dedicou-lhe o “Poema para Candinho Portinari”.
Filho do pintor e diretor do projeto que leva o seu nome, João Candido Portinari diz que o pai tirou parte do sustento, em momentos da carreira, da produção de retratos, mas que gostava mesmo de pintar os amigos.
— Ao pesquisar a produção dele cronologicamente para o catálogo raisonné, há períodos em que pintou uma batelada de retratos, intercalados por outros em que não pintou nenhum. Numa época em que não existia o mercado de arte como hoje, era uma forma de fazer algum dinheiro. Ele não gostava de retratos, dizia que era cansativo. As exceções eram os que fazia para presentear os amigos — conta João Candido. — Ele fez vários, do Vinicius, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Drummond, Adalgisa Nery. E, curiosamente, outros amigos que eram muito próximos ele não pintou, como Villa-Lobos e Niemeyer.
‘Vinicius de Moraes — Por toda a minha vida’: veja itens da exposição em cartaz no Museu de Arte do Rio
O acervo do Projeto Portinari guarda itens como correspondências entre os dois, uma entrevista feita pelo poeta após o pintor concorrer à Câmara e ao Senado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) nos anos 1940 — na qual o modernista diz ter chegado às suas convicções “por força de sua infância pobre”—, e uma foto da celebração dos 50 anos do escritor Graciliano Ramos, em 1942, na qual ambos aparecem. No ano em que pintou o retrato de Vinicius, Portinari trabalhava nos murais e painéis de azulejo para o prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Centro do Rio, inaugurado em 1943 e posteriormente batizado de Palácio Capanema. No mesmo ministério, o poeta exerceu o cargo de censor cinematográfico, entre 1936 e 1938, antes de ingressar na carreira diplomática, na década seguinte.
— Quando pintou o retrato do Vinicius, meu pai estava quase totalmente dedicado às decorações do Capanema, ficou de 1936 a 1944 fazendo isso. Drummond era chefe de gabinete do (então ministro Gustavo) Capanema, todos se conheciam — observa João Candido. — Os dois tinham uma visão de mundo muito parecida. A diferença é que meu pai pensava no coletivo, na questão social, e Vinicius estava focado no indivíduo, no drama da pessoa consigo mesma, com seus amores, suas emoções.
Visão dramática do amor
Autor da biografia “Vinicius de Moraes: o poeta da paixão” (Cia das Letras, 1994), José Castello vê a amizade entre o pintor e o poeta como um reflexo da vida intelectual carioca até a década de 1960, quando Brasília é inaugurada como a nova capital federal.
— O Rio não era só a capital política, mas a capital cultural do Brasil. Por mais que ainda tenha essa importância, a atmosfera era outra na época. Pintores, escritores, entre outros artistas e intelectuais, se encontravam diariamente, tudo girava em torno disso — diz Castello. — Vinicius falava com todo mundo, tinha entrada em todos esses grupos. Era um grande sedutor, não só com as mulheres, com os amigos também. Havia a admiração por essa pessoa que se transformou em figura chave não só para a poesia ou a música, mas para a identidade carioca construída no século XX.
Paineis de azulejo de Portinari no Palácio Capanema — Foto: Márcia Foletto
O biógrafo destaca o orgulho que o poeta sentia por ter sido modelo de Portinari:
— Segundo o que me contaram as ex-mulheres que entrevistei para o livro, ele jamais se afastava desse quadro, era como se fizesse parte da sua identidade. Ele terminava as relações e saía de casa com o que julgava essencial, e o retrato sempre o acompanhou. Fazia parte dessa visão dramática que tinha do amor, das paixões que acabam, bem típica dele.