Uma mulher morreu, o bebé também. As palavras da ministra, ditas no calor do momento, soaram, na opinião dos especialistas, frias, como se o erro fosse da grávida e não do sistema que falhou em acompanhá-la. No plano político, Ana Paula Martins já viu o presidente do conselho de administração do Hospital Amadora-Sintra apresentar a demissão. Num setor “muito sensível e muito frágil”, como lembra a politóloga Paula do Espírito Santo, a precipitação política tem custos altos. E, neste caso, pode ter custado à ministra a confiança de muitos, dentro e fora do Governo
Na audição de sexta-feira na Assembleia da República, Ana Paula Martins sugeriu que o caso da grávida guineense que morreu no Hospital Amadora-Sintra inseria-se no conjunto de casos de “grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, sem médico de família, recém-chegadas a Portugal e que, muitas vezes, nem falam português, não foram preparadas para chamar o socorro e nem telemóvel têm”. Mas, afinal, a mulher em causa estava em Portugal há vários meses, tinha autorização de residência, tinha sido acompanhada nos serviços de saúde e estava inscrita no SNS.
A ministra falava, na verdade, sem conhecer todos os dados e foi aí que começou o problema, na opinião dos especialistas ouvidos pela CNN Portugal.
O politólogo José Filipe Pinto considera que o episódio reflete “um grande desgaste político e pessoal” da ministra, que “acreditou piamente nas palavras do presidente do Conselho de Administração do Amadora-Sintra”, informação que se viria a revelar incorreta.
“Ela entendeu que podia usar esses dados de forma rigorosa, mas foi excessivamente dura. E pode considerar-se que não houve uma marca de humanidade no discurso”, sublinha.
Para José Filipe Pinto, o erro de Ana Paula Martins não foi apenas técnico, mas ético e político: “A ministra precipitou-se e perdeu o controlo do discurso. A irritabilidade fruto da situação que se está a arrastar, de delapidação do seu capital político, falou mais alto. E acabou por se afastar de um tom de sensibilidade que o momento exigia.”
“Isto mostra que a ministra se sente vítima da incompreensão e ajuda a perceber o seu ar sempre demasiado sisudo. A verdade é que utilizou uma informação incorreta, mais do que incompleta, para fazer um retrato da situação. E aí, é evidente que cometeu um erro político”, continua.
Também a politóloga Paula do Espírito Santo entende que a ministra falhou duplamente: ao falar cedo demais e ao fazê-lo sem a devida prudência institucional.
“O discurso e a justificação foram feitos num momento em que ela não tinha todos os dados. Nesses casos, o que se deve fazer é remeter para a investigação e para o apuramento dos factos, não tirar conclusões extensivas”, explica à CNN Portugal.
A professora universitária acrescenta que, independentemente de a ministra ter sido mal informada, “as convicções assumidas no Parlamento têm de ter uma base sólida e demonstrativa para que depois não haja correções”, sob pena de minarem a credibilidade política.
“Este discurso no Parlamento acaba por inflamar ainda mais os ânimos relativamente a um setor que é disfuncional, muito sensível e muito frágil, e comprometem a própria ministra, na medida em que ela acaba por ser a última pessoa a ser informada corretamente, quando deveria ser a primeira a dar-nos informação sobre aquilo que acontece.”
“Estamos a entrar num discurso de grande leveza política, em que se tenta desresponsabilizar o sistema, colocando o ónus da culpa nos próprios doentes”, continua.
Paula do Espírito Santo lembra que a grávida “estava em Portugal há meses, era acompanhada e tinha suporte familiar”. Por isso, as palavras de Ana Paula Martins “acabam por colar-se a um tipo de narrativa que, ainda que involuntariamente, ecoa o discurso populista que culpa a imigração pelas falhas do Serviço Nacional de Saúde”.
“Há aqui detalhes que querem aproveitar a onda de algum populismo que se vai instalando e que tem a ver com a direita radical, que elegeu o alvo da imigração como sendo a fonte de todos os males. A própria ministra acaba por cavalgar essa onda de que a imigração é responsável pelas dificuldades do SNS em dar um seguimento capaz às grávidas, precisamente porque estas grávidas não conseguem, na perspetiva da ministra, comunicar devidamente com o SNS”, analisa.
José Filipe Pinto também partilha da opinião que a dureza da intervenção no Parlamento, num caso envolvendo uma mulher imigrante, em contexto de maternidade e perda, abriu ainda espaço para um tipo de discurso que o próprio Chega tem explorado politicamente.
“Ela não se separou claramente da posição que tem sido defendida pelo populismo identitário, que responsabiliza os imigrantes por usarem o sistema de saúde português”, nota o politólogo. “Isso é muito grave, porque desvaloriza o estatuto social da grávida e transmite uma percepção errada da realidade.”
A ministra já veio lamentar a morte da mulher e do bebé e reconheceu “a sensibilidade da situação”. Mas, para os analistas, a “sensibilidade” devia ter sido demonstrada antes, não depois.
“Uma situação não é sensível a posteriori, tinha de ser sensível a priori”, considera José Filipe Pinto. “A ministra falhou porque reagiu sob pressão e acreditou em dados incorretos. E isso só aumentou a dimensão do desastre.”