Warner / DivulgaçãoViveik Kalra faz o personagem principal em “A Música da Minha Vida” (2019), filme da diretora Gurinder Chadha.Warner / Divulgação

Os fãs de Bruce Springsteen têm um programa imperdível nos cinemas desde quinta-feira (30), quando estreou Springsteen: Salve-me do Desconhecido (2025), que reconstitui os bastidores da gravação do disco Nebraska (1982). 

Apesar de suas virtudes, como as atuações de Jeremy Allen White, na pele do protagonista, e de Jeremy Strong, no papel do produtor e empresário Jon Landau, este filme não dá conta de mostrar como o cantor e compositor alcançou o estrelato sendo um porta-voz da classe operária nos Estados Unidos. 

Para compreender melhor a força dos versos de Springsteen, a dica é assistir a A Música da Minha Vida (Blinded by the Light, 2019), que pode ser alugado em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play ou YouTube.

Rob DeMartin / DivulgaçãoBruce Springsteen em um show de 2024 nos Estados Unidos.Rob DeMartin / Divulgação

Bruce, vale dizer, nem é personagem neste filme. Mas A Música da Minha Vida está inserido em uma recente onda de celebração a grandes nomes da música, como as cinebiografias de Freddie Mercury (Bohemian Rhapsody), Elton John (Rocketman), Elvis Presley (Elvis) e Bob Marley (Bob Marley: One Love), além do documentário Moonage Daydream, sobre David Bowie, e da comédia romântica Yesterday, sobre os Beatles.

Como deu para reparar, a homenagem a Bruce Springsteen é a única que não teve a sorte de conservar seu nome de batismo ao desembarcar no Brasil, onde recebeu um bem genérico. O filme é mais uma das incontáveis vítimas das traduções que pasteurizam ou até desvirtuam os títulos originais.

A escolha do título em inglês, Blinded by the Light (cego pela luz), já dá mostra da singularidade do filme dirigido pela britânica de ascendência indiana Gurinder Chadha — a mesma do premiado Driblando o Destino (Bend It Like Beckham, de 2002). A exemplo das reverências a Freddie, Elton, Bob, David, Paul, John, George e Ringo, ela poderia ter nomeado o longa de Badlands, Born to Run, Hungry Heart ou Dancing in the Dark, canções bastante populares de Springsteen que aparecem em cena e cujas letras espelham o contexto da trama. Mas Chadha optou por Blinded by the Light (1973), o primeiro single do cantor e compositor estadunidense, nunca visto no topo das paradas de sucesso.

A Música da Minha Vida adapta a história real do jornalista Sarfraz Manzoor, hoje com 54 anos. O filme se passa na Inglaterra de 1987, convulsionada pelo desemprego — sobretudo na indústria — e pelo arrocho nos gastos públicos, consequências da política econômica adotada pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013), reeleita naquele ano para um terceiro mandato. 

Nesse cenário, as letras de Springsteen, muitas delas sobre trabalhadores que acreditam em um futuro melhor, tocam em cheio Javed (papel de Viveik Kalra), um adolescente de família paquistanesa na cidadezinha de Luton, “terras ruins” como aquelas cantadas pelo ídolo recém-descoberto. A música torna-se uma aliada, sobretudo quando o pai, Malik (Kulvinder Ghir), é demitido da fábrica de automóveis, em decorrência do incentivo às importações pelo governo do Reino Unido. Aí, a mãe, Noor (Meera Ganatra), precisa trabalhar dobrado como costureira para garantir o sustento da casa, onde também moram a irmã de Javed e uma prima.

Aos problemas financeiros, somam-se muitos outros.

Em casa, Javed sofre com o apego do pai às tradições e sua subserviência herdada do colonialismo: “Nós temos de manter a cabeça baixa”, Malik diz, enquanto o filho sente-se nascido para correr (o choque geracional é um dos motores mais potentes do filme).

Na rua, o garoto sofre com o preconceito e o racismo para com os imigrantes asiáticos — alvos de pichações, passeatas e até agressões xenofóbicas. 

Em seu íntimo, ele sofre com as inquietações típicas da adolescência, como a urgência pelo primeiro beijo em uma garota — a ativista Eliza (Nell Williams) atiçará seu coração faminto — e as aspirações profissionais: Javed sonha em ser um escritor ou um jornalista, no que é estimulado pela professora (Hayley Atwell).

Nick Wall / Warner Bros./DivulgaçãoNúmeros musicais do filme “A Música da Minha Vida” remetem aos videoclipes dos anos 1980.Nick Wall / Warner Bros./Divulgação

Tal qual a mãe do protagonista, Gurinder Chadha é habilidosa ao costurar esses elementos e não pesa a mão. Seu filme tem delicadeza, tem humor, tem fantasia — os números musicais remetem a videoclipes dos anos 1980, com figurantes dançando e coadjuvantes se juntando ao coro. Embora o amigo sikh que apresenta Bruce Springsteen a Javed seja pouco desenvolvido (não sabemos direito, por exemplo, como ele descobriu o artista), os personagens são bem trabalhados e merecem seus solos — destaque para a cena em que durão Malik, pintando os cabelos para o casamento da sobrinha, desaba em toda a sua vulnerabilidade. 

E embora aqui e ali A Música da Minha Vida escorregue para um certo didatismo moral, é bonito ver letras escritas por um sujeito de um subúrbio dos EUA ressoando para um adolescente inglês de origem paquistanesa — e também é bonito, apesar de preocupante, que os versos e os discursos de Springsteen permaneçam tão atuais e vigorosos. 

A transformação do mundo em um lugar melhor e mais justo não vem de quem tem o poder para isso. Quando Bruce canta, em Dancing in the Dark, que “você não pode começar um incêndio sem uma faísca”, dá para pensar em, por exemplo, Greta Thunberg, a adolescente sueca que virou símbolo na luta pela preservação do ambiente, e nas tantas lideranças comunitárias que se empenham para trazer qualidade de vida às favelas brasileiras. Segue muito necessário o apelo com o qual Bruce encerrava seus shows: “Ninguém vence a não ser que todo mundo vença”.

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