O combate às alterações climáticas em Portugal centra-se muito – e bem – na redução do uso de combustíveis fósseis, mas também poderia ser feito através de uma gestão correcta dos aterros nacionais. Ao enterrar resíduos orgânicos que não foram previamente tratados, contrariando o que obrigam as regras nacionais e europeias, o país enviará para a atmosfera, a cada ano, até um milhão de toneladas de gases com efeito de estufa que poderiam ser evitados com tratamento mecânico e biológico (TMB).

“O principal problema dos aterros em Portugal é a descarga de matéria orgânica sem que esses resíduos sejam previamente tratados – o que constitui uma ilegalidade. A maioria dos aterros no país (28 de 31) está a incorrer nessa prática, que é não só ilegal, mas também um atentado à saúde pública, ao ambiente e ao clima”, afirma ao Azul Rui Berkemeier, engenheiro do ambiente e especialista da associação ambientalista Zero na área dos resíduos.

A Zero apresenta nesta quarta-feira à Comissão Europeia uma queixa contra o Estado português por estar a permitir, há mais uma década, a descarga de matéria orgânica em aterros sem o tratamento prévio obrigatório por lei. A matéria orgânica não estabilizada ainda está activa biologicamente, ou seja, contém substratos que as bactérias podem decompor em metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2).

O Regime Jurídico de Deposição de Resíduos em Aterro estabelece que o pré-tratamento deve incluir não só uma selecção adequada dos diferentes tipos de resíduos, mas também a estabilização da matéria orgânica. Se respeitados, tais procedimentos obrigatórios ajudariam a evitar emissões de gases que poluem a atmosfera e agravam a crise climática.

“A nível nacional constata-se que, em 2024, foram depositados em aterro sem pré-tratamento adequado, nos termos da Directiva Aterro, cerca de 28% dos resíduos geridos pelos Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos”, refere a mais recente edição do Relatório Anual de Resíduos Urbanos, elaborado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

APA a par da situação

Os dados presentes no relatório de 2025 mostram que a APA, enquanto autoridade nacional para os resíduos, está a par da situação de incumprimento à luz da Directiva Aterro. Apesar disso, a APA emitiu uma nota técnica, em Abril de 2022, na qual refere que só “a partir de 1 de Janeiro de 2026” passaria a ser de facto proibida a descarga de resíduos sem pré-tratamento. Em teoria, contudo, uma nota técnica da APA não se sobrepõe às regras da União Europeia.

O Azul questionou, sem sucesso, a APA relativamente à emissão da nota técnica que, apesar de referir a legislação em vigor, contempla a possibilidade de incumprimento da mesma até Janeiro de 2026.

“O risco de multas avultadas – de centenas de milhões de euros – é muito elevado porque o que Portugal está a fazer nos aterros é o mesmo que, no passado, a Itália estava a fazer no aterro de Malagrotta”, alerta Rui Berkemeier, referindo-se à decisão do Tribunal da União Europeia de 2014 que faz jurisprudência nessa matéria.

Redução ou subida?

A apesar de o relatório da APA destacar “uma redução significativa” da taxa de deposição em aterro de resíduos sem pré-tratamento em 2024 em relação ao ano anterior – uma queda de 36% para 28% –, a descarga específica de matéria orgânica sem estabilização tem vindo sempre a aumentar em valores absolutos.

Em 2021, foram registadas 106 mil toneladas lançadas em aterros sem os cuidados exigidos por lei, valor que sobe para 145, 155 e 174 mil toneladas, respectivamente, nos anos de 2022, 2023 e 2024. Quanto maior a quantidade de matéria orgânica não estabilizada enviada para aterro, maior será a emissão de metano para a atmosfera.

“Precisamos rapidamente de corrigir esta situação, senão vamos acabar por pagar todos. A solução é garantir que todos os resíduos, antes de serem descarregados nos aterros, sejam tratados de forma completa em unidades de Tratamento Mecânico e Biológico (TMB)”, defende Rui Berkemeier.

Das cascas da laranja que comemos ao lanche à comida que não foi vendida nos supermercados, toda a matéria orgânica que se decompõe nos aterros é uma fonte significativa de gases com efeito de estufa, especialmente o metano. O metano é um poluente com um potencial de aquecimento global muito superior ao do dióxido de carbono.

Quase 60% de tudo o que os portugueses deitam fora termina em aterros. O sector dos resíduos foi responsável em 2023 por 11% das emissões nacionais de gases com efeito de estufa, o que corresponde a 5,86 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Este valor – que inclui poluentes oriundos não só dos aterros, mas também das incineradoras e do tratamento de águas residuais – aumentou 26,8% desde 1990.

O que é o TMB?

As unidades de tratamento mecânico e biológico (TMB) dos resíduos podem funcionar de formas diferentes consoante o modelo ou a sofisticação dos equipamentos. Há estruturas destinadas à compostagem ou outras à digestão anaeróbia (ver infografia).





“Essas infra-estruturas representam um investimento estruturante do país ao nível da gestão de resíduos urbanos e uma aposta numa das opções mais elevadas ao nível da hierarquia de gestão de resíduos – a reciclagem da fracção orgânica”, explica Rui Dores, do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Universidade Nova de Lisboa, em resposta ao Azul.

O processo de TMB começa com o tratamento mecânico dos resíduos, através do qual o lixo é separado em três partes diferentes: os materiais recicláveis (plástico, metal, cartão e vidro), a matéria orgânica e, por fim, uma fracção de rejeitados.

A matéria orgânica, composta por restos de refeições ou vegetais, segue para o tratamento biológico. Esta etapa pode consistir na digestão anaeróbia com produção de biometano ou então na compostagem, a exemplo do que ocorre nos modelos existentes em Évora (operados pela Gesamb) e em Beja (Resialentejo).

“Ao incluírem uma solução de valorização orgânica, as unidades de TMB/tratamento biológico promovem a biodegradação e estabilização dessa fracção dos resíduos urbanos, gerando um produto designado composto, que pode ser adicionado ao solo enquanto correctivo agrícola, em substituição de adubos ou fertilizantes químicos”, acrescenta Rui Dores.

Portugal possui 21 unidades de TMB através das quais, em 2023, foram desviadas de aterro quase meio milhão de toneladas de resíduos urbanos. O objectivo é sempre reduzir ao máximo não só os resíduos que são depositados nos aterros, mas também o impacto ambiental dessa deposição. O desempenho de cada unidade de TMB pode, contudo, variar muito.

Segundo Rui Berkemeier, há aterros que possuem TMB, mas onde não está a ser feito o tratamento completo dos resíduos orgânicos enviados para as unidades – o que também infringe a legislação. Por outro lado, há exemplos de sucesso, como o da Resialentejo, uma empresa intermunicipal cuja unidade de TMB consegue desviar 70% dos resíduos indiferenciados do aterro.

Há ainda sistemas, como a Lipor e a Valorsul, que não possuem unidades de TMB, mas sim incineradoras. Trata-se de infra-estruturas onde o lixo é queimado para produzir energia térmica, que pode ser convertida em electricidade – e daí a denominação “valorização energética” dos resíduos.

Plano aposta na incineração

O Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC 2030), o principal instrumento de política energética e climática em Portugal, atribui a redução das emissões do sector dos resíduos nas últimas duas décadas precisamente “à entrada em funcionamento de um conjunto de infra-estruturas de tratamento biológico de resíduos urbanos”.

O documento regista uma “redução muito substancial das emissões de metano em aterros sanitários (na ordem dos 25% entre 2005 e 2020, ou seja, uma redução absoluta de mais de 1,3 milhões de toneladas de CO2 equivalente), como resultado do desvio de quantidades relevantes de biorresíduos dos aterros sanitários”. Agora, até 2030, o PNEC 2030 faz o elogio da aposta da continuidade da aposta na valorização orgânica, mencionando a incineração como “um meio complementar”.

Contrariando esta visão exposta no PNEC 2030, contudo, a proposta do novo plano de acção TERRA (Transformação Eficiente de Resíduos em Recursos Ambientais) prevê um investimento significativo na valorização energética (mais de 1300 milhões de euros), que é um valor mais de três vezes maior do que o previsto para a valorização orgânica. O plano TERRA não prevê criação de novas TMB, promovendo apenas a optimização da eficiência e da diminuição da indisponibilidade das unidades existentes.

O Azul questionou o Ministério do Ambiente e da Energia (Maen) relativamente ao facto de o plano TERRA parecer estar em desacordo com o PNEC 2030, que encoraja vivamente a redução de biorresíduos depositados em aterros através de sistemas de valorização orgânica, mas não obteve resposta.