
A pianista Maria João Pires
Momento arrepiante em palco aconteceu há 26 anos. “Quando aceitas algo, parece um milagre”. Maria João Pires despediu-se do piano, aos 81 anos.
“Tenho a certeza que consegues, conhece-lo tão bem!”. Em palco, de batuta na mão e de sorriso na cara, o maestro milanês Riccardo Chailly referia-se ao Concerto n.º 20 de Mozart. A sua postura descontraída contrastava, e muito, com a mais conceituada pianista portuguesa que, sentada a seu lado, estava visivelmente apavorada.
Aqueles breves segundos de 1999, em Amesterdão, ficariam para a história. Enquanto a orquestra preparava a sua entrada, Maria João Pires apercebia-se já em palco, em frente a duas mil pessoas, que se tinha preparado para tocar uma composição diferente.
Num momento digno de filme, o transe musical parecia fogo a consumir a pianista, que aos 81 anos anunciou, este sábado, ter afastado as mãos do piano de vez.
“Deixei tudo em casa, não trouxe nada comigo!”, respondeu ao maestro milanês, em palco, uma Maria João Pires apanhada de surpresa. Claramente em choque, a pianista ainda olha para baixo e parece entrar em conflito consigo mesma, como quem pensa: ‘consigo ou não fazer isto?’. Um calmo Chailly garante que sim. Depois de visionar em segundos tudo o que podia correr mal, Maria João Pires diz, com um ‘sorriso amarelo’: “vou tentar”.
O súbito silêncio da orquestra dita a entrada apavorada dos dedos de Maria João Pires em cena. O piano entra sozinho, totalmente exposto naquele momento improvisado e, quase como se a composição de Wolfgang tivesse sido criada para aquele momento de terror, a vontade venceu o medo:
“Ela ficou chocada, porque estava à espera que tocássemos outro Concerto”, recordou mais tarde Riccardo Chailly.
“Quando comecei o primeiro compasso em ré menor, ela saltou e entrou em pânico, como se tivesse levado um choque elétrico. O milagre foi que ela tem uma memória tão boa que conseguiu, dentro de um minuto, mudar para um novo Concerto sem cometer um único erro“, lembrou o maestro.
“Houve um mal-entendido”
Anos mais tarde, a pianista adiantou que, na verdade, estava a substituir outro artista naquela noite.
“Ligaram-me na noite anterior a perguntar se podia ir tocar. Houve um mal-entendido. Percebi 488 [KV 488, o Concerto No. 23 de Mozart], mas era para tocar o 466 [o Concerto No. 20]”, explicou, em entrevista à Classic FM.
“O 488 eu tinha tocado umas semanas antes, então lembrava-me muito bem; o 466 eu tinha tocado a última vez uns 10 ou 11 meses antes, então já me tinha esquecido. É assim que a memória funciona (…) “não tive um ataque de pânico, mas foi muito assustador”, reviveu, confessando no entanto que o momento tão apreciado “não foi um highlight” da sua carreira. Recorda-o apenas como um “evento engraçado”. O grande segredo da pianista, naquele momento? “Aceitação“.
“Quando aceitas algo, parece um milagre, as coisas voltam a ti”, disse, na mesma entrevista.
Maria João Pires despediu-se este fim-de-semana do piano. “Eu já não sou pianista”, disse, em entrevista à Renascença.