Ao ler este livro, não pude deixar de recordar outras leituras e outras personagens: “As Longas Noites de Caxias” de Ana Cristina Silva e a tenebrosa Leninha; João Balseiro e tantos mortos pela Pide como Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, a quem José Saramago dedica o seu “Levantado do Chão”. E claro, Aurora Rodrigues, a grande mulher que sofreu e resistiu mais tempo à tortura do sono às mãos da única Pide que subiu a chefe de brigada Madalena Oliveira, uma mulher impiedosa, sádica e sem pingo de humanidade.
A obra é prefaciada pelo professor Luís Farinha, que ressalta que “passado meio século sobre a queda dos fascismos, foi então possível começar a compreender os fenómenos ocultos (ou silenciados) do consentimento coletivo ou mesmo da colaboração de vastos grupos sociais ou instituições que, de forma conivente, ajudaram e permitiram manter uma violência irrestrita das polícias políticas sobre os seus compatriotas resistentes.” (pág. 6). Logo a abrir o livro, o autor faz um aviso relativamente ao facto de que se trata de uma obra de ficção e dedica-a a todas as pessoas que lutaram contra a ditadura em Portugal.
Agora, que vivemos, cinquenta anos após Abril, o momento mais perigoso da nossa história recente em que as forças revanchistas e de extrema direita se sentem à vontade para atacar os mais vulneráveis, a leitura deste livro é muito actual e até premonitória, pois avisa para os perigos daqueles que nunca estiveram a dormir. “Voltaremos, nós não desistimos” (pág. 101) diz, a certa altura, o inspector da PIDE ao neto. Também na epígrafe ao livro, na citação de Chico Buarque no discurso de aceitação do Prémio Camões 2019 “A ameaça fascista persiste no Brasil como um pouco por toda a parte” o tema do risco do fascismo que está sempre à espreita, nos alerta para o perigo constante dos saudosistas do passado. Cá os temos, umas vezes vêm “em pezinhos de lã” outras “com botas cardadas”.
A figura central é Carlos, o narrador, em busca de descobrir o seu passado, a sua origem. Ao longo do romance surgem várias personagens, em tempos e lugares distintos; algumas, aparentemente desligadas, mas que convergem para a criação de uma história, de uma época, de um enquadramento. A personagem de Filomena é o retrato de como se cria e cresce um(a) fascista. O amor a Salazar e o ódio aos comunistas precisou de toda uma estrutura que alimentou o ódio, que criou o medo e a desconfiança, que viveu da impunidade e da brutalidade. Lisboa, por muito soalheira que seja, não pode ignorar as sombras que se escondem encostadas a uma esquina, ou atrás de uma porta a escutar o que se passa na casa dos vizinhos. Lisboa brilhou em Abril, mas a justiça foi branda e tolerante e até concedeu pensões a torcionários enquanto a negou ao principal herói da revolução. Lisboa quis pôr os traços da ditadura para baixo do tapete, modernizou-se, chamou turistas, gentrificou-se, apagou a sede da António Maria Cardoso e transformou-a num condomínio de luxo… Mas afinal é possível um povo, um país libertar-se da carga duma ditadura de 48 anos? “Não sei, filho. Vou vendo as notícias e sigo de longe o que se passa em Portugal, mas há muita coisa que me preocupa… Continua a haver aquele estilo mesquinho de gente que dá graxa ao patrão para ser promovida… Depois, há os que estão sempre à espreita da vida dos outros para poderem contar qualquer coisa que prejudique o parceiro do lado, mesmo que seja mentira. Esses são do mesmo estilo que eram os bufos de outros tempos…” (pág. 232)
Este romance parte da necessidade de “contar aquelas histórias”, para que não se percam na falta de memória, pois há sempre quem esteja “à espera de uma oportunidade para que o mal volte a ganhar poder” (pág. 238). Termino fazendo referência ao documentário “Aqueles Que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem) de Marianela Valverde e Humberto Candeias, testemunhos de familiares de presos políticos e de opositores que viveram na clandestinidade. Documentos cuja divulgação se afigura cada vez mais urgente.
Artigo publicado em Lendo e escrevendo, por Almerinda Bento a 16 de junho de 2025