O câncer de mama é o que mais causa mortes em mulheres no Brasil e somente em 2025 estima-se que sejam diagnosticados 73.610 novos casos, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca). As estatísticas mostram uma realidade conhecida, mas são insuficientes para acentuar outras questões, como a importância da prevenção também entre mulheres trans e homens trans que optaram por manter as mamas.
Mastologista chefe do Núcleo de Mama do Hospital Moinhos de Vento de Porto Alegre, Maira Caleffi explica que a orientação de saúde para se ter um diagnóstico antecipado não difere entre a população cisgênera e transgênera. “Mamografia e ultrassom são as melhores armas disponíveis para fazer a detecção precoce, que é uma forma de prevenção para ter um melhor prognóstico.”
Em 2024, foram realizadas 4.405.597 mamografias em mulheres no SUS e 9.184 em homens; não há dados específicos sobre população trans
Foto: zalaybeat/Adobe Stock
Ainda segundo Maira, a terapia hormonal feminizante aumenta a predisposição de mulheres trans ao câncer de mama. “Há um estímulo da glândula mamária, que tem sempre no homem, mas que é geralmente atrofiada quando não recebe hormônio externo”, explica. Clinicamente, a retirada da glândula mamária em homens trans também merece atenção, como aponta a coordenadora da Mastologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Andréa Damin. “A mastectomia masculinizadora diminui o risco (do câncer), mas pode deixar tecido glandular”, alerta a médica.
Diretor do Hospital do Câncer III, Marcelo Bello reforça essa necessidade de cuidados. “Nos casos de mutação genética ou forte histórico familiar, deverá ser estabelecido um seguimento individualizado baseado no alto risco.”
A falta de um protocolo específico para pessoas trans se deve ao fato de os dados epidemiológicos brasileiros, por enquanto, não desagregarem a doença por identidade de gênero, segundo os especialistas. “O rastreamento é adaptado e individualizado, utilizando as diretrizes de pessoas cisgêneras como referência e considerando a história clínica, o tempo de terapia hormonal e as cirurgias realizadas”, explica o sanitarista Itamar Bento Claro, da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede, da Coordenação de Prevenção e Vigilância, do Inca.
Na introdução do mais recente relatório Controle do Câncer de Mama no Brasil: Dados e Números 2025, o próprio Inca faz esse indicativo: “A maioria das evidências sobre o câncer de mama refere-se a mulheres cisgênero, mas ressalta-se que pessoas trans, não binárias, de gênero fluido e indivíduos intersexo que tenham tecido mamário também podem estar em risco e necessitam de acesso a prevenção, diagnóstico e tratamento”.
Estudos internacionais como Compreendendo o Papel dos Hormônios Sexuais no Câncer para a Comunidade Transgênero, publicado na Trends in Cancer, em 2022, indicam que o risco em mulheres trans em hormonioterapia é maior do que em homens cisgênero, mas menor do que em mulheres cis. Os pesquisadores também apontam para o fato de que é preciso compreender melhor em que grau isso ocorre para que seja dado o cuidado médico adequado a esse grupo.
De acordo com o professor da pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Cristiano Hamann, a raiz da defasagem é cultural e tem impacto também na formação dos profissionais da saúde. “As pessoas às vezes são mal atendidas ou não são compreendidas na sua singularidade, e isso faz com que se crie um estereótipo de que aquele lugar não é para diferenças ou dissidência de gênero”, afirma. “Então, passam a não buscar mais aquele sistema de saúde.”
Nesse sentido, Hamann propõe um olhar sobre os diferentes tipos de desconforto que a mamografia pode gerar em sujeitos cis e trans. Para mulheres cisgênero, de acordo com ele, a ansiedade estaria mais associada à alta prevalência da doença no contexto brasileiro. Logo, existiria uma fundamentação epidemiológica.
Já para a população trans, esse incômodo pode ter uma forma singular de aparecimento. “Acontece quando um usuário transmasculino, que possui as glândulas mamárias, mas que não necessariamente está confortável com o seu corpo, se depara com a realização do exame”, exemplifica.
Deste modo, o uso adequado do nome social e a facilitação na entrada de pacientes transgêneros nos convênios de saúde, que muitas vezes exigem maiores explicações para o acesso com base no sexo biológico, são caminhos para amenizar essa sensação discriminatória. Para o professor, acolhimento e rede de apoio, que costumam faltar a esses indivíduos, são fundamentais no tratamento.
No ano passado, foram realizadas 4.405.597 mamografias em mulheres no SUS e 9.184 em homens. Em setembro, o Ministério da Saúde ampliou o acesso aos exames para mulheres a partir dos 40 anos, mesmo que não apresentem sinais da doença. E subiu de 69 anos para 74 anos a idade para mamografia preventiva.
CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE
A mastologista Maira ainda enfatiza a necessidade do autoconhecimento. “A gente não fala mais em autoexame, porque quem faz o exame, na verdade, são os profissionais de saúde. A gente fala em autocuidado, porque as pessoas de qualquer gênero precisam.” Fazer exercícios físicos e diminuir o uso de bebidas alcoólicas e cigarro, além de controlar o peso, são atitudes inegociáveis, na opinião dela. “A obesidade, hoje em dia, junto com o aumento da idade, são os principais fatores de risco para desenvolver a doença”, acrescenta.
Atualmente, o câncer de mama tem bom prognóstico se diagnosticado precocemente. “É preciso mais incentivo financeiro para que o SUS continue sendo um dispositivo de mudança cultural. É a oportunidade de fortalecer profissionais para que eles consigam ter mais fôlego para fazer intervenções nas comunidades”, diz Hamann.
*Isabela Daudt é finalista do Prêmio A.C.Camargo Jovem Jornalista.