“Isto não é uma entrevista, Valentina, é um interrogatório, uma radiografia à minha cabeça e à minha alma”. Este desabafo foi deixado numa das sessões de perguntas da diretora adjunta do DN Valentina Marcelino a Gouveia e Melo e que tinham como objetivo escrever um livro sobre o seu pensamento. As conversas aconteceram em junho e versaram vários temas – a saúde foi um, tendo o candidato à Presidência sinalizado algumas das vulnerabilidades que já tinha detetado em 2021 e que se mantêm atuais. O interesse era saber como tinha sido a experiência na task force da vacinação contra a covid-19 e o contacto com o SNS. No livro Gouveia e Melo – As razões ficamos a conhecer o seu pensamento em relação a vários temas; sobre a infância e juventude passadas entre Moçambique, Viseu e o Brasil, e como estas influências moldaram o seu pensamento. Quanto a condições impôs uma: não falava sobre a vida pessoal.

“Saúde, uma área que conheceu quando esteve na task force e que é uma das maiores preocupações dos portugueses. O Eurobarómetro de Inverno de 2025 dizia que 58 % dos cidadãos nacionais consideram que deve haver prioridade no apoio à saúde pública, um valor bastante superior à média europeia, que é de 25 %. Como é que um Presidente da República pode utilizar a sua magistratura de influência para promover consensos sobre uma reforma no SNS?

Teremos de promover uma reforma profunda na saúde. Nos últimos dez anos duplicámos o investimento nessa área e não duplicámos a qualidade dos serviços de saúde, nem de perto nem de longe. Portanto, estamos perante um problema verdadeiramente organizativo e de cultura onde grassam múltiplos interesses. Temos de mudar a cultura existente no SNS e alterar a forma de organização, porque as duas coisas estão intimamente ligadas e há muito desperdício, falta de racionalidade, de controlo e de responsabilização.

Gostava que falasse um bocadinho mais sobre isso.

É muito simples. Imagine que tem um hospital que está sob a administração do Estado, portanto, não tem autonomia administrativa nem financeira. Se o diretor do hospital quiser contratar dez médicos, entra num processo tão complexo que não consegue fazê-lo. A forma como as Finanças controlam os outros ministérios, e as regras verdadeiramente kafkianas da administração pública conduzem muitas vezes à pura paralisia e a soluções mais dispendiosas, quando tomadas já em desespero.

É habitual assistir-se a medidas de elevada irracionalidade económica, mas formalmente muito respeitadoras de regras e processos que não são nada eficientes. Haverá alguma lógica em inibir-se a contratação de médicos para os hospitais, mas liberdade para contratá-los por via de empresas prestadoras de serviços, a custos três ou quatro vezes superiores?… Ou pior: não tendo os recursos humanos necessários, autorizar horas extraordinárias pagas a um preço mais elevado, cujo somatório permitia contratar mais pessoal e evitar essas mesmas horas?

Esta irracionalidade administrativa cria um sistema que é presa fácil de interesses instalados, corporativos e individuais, que tornam a gestão do SNS como um todo muito ineficiente e, simultaneamente, com custos muito mais elevados para o contribuinte.

Apercebeu-se disso claramente quando esteve na task force?

Claro que sim. Infelizmente, não é só na saúde, é transversal à administração pública.

Chegou a dizer que encontrou um SNS muito desestruturado e excessivamente fragmentado a nível regional, tendo sido por isso que criou uma espécie de sistema nervoso central para coordenar a campanha de vacinação…

Eu vinha de um sistema militar, com uma cadeia de comando piramidal e organizada. Entrei no SNS e encontrei uma coisa super horizontalizada, sem estrutura verdadeiramente coordenadora. Havia demasiados príncipes e principados, e nem os sistemas informáticos falavam entre si: os do Norte tinham um sistema diferente dos do Sul e dos do Centro. Aquilo era um pandemónio. Cada vez que há um novo sistema informático, há novos investimentos, e depois as necessidades de manutenção exigem dez empresas a manter dez sistemas diferentes, em vez de uma empresa que mantenha um sistema centralizado. Tudo isto são irracionalidades económicas que os portugueses estão a pagar.

E sem razão.

Ou sem resultados positivos sentidos nos utentes. Aliás, o que é pior: se por hipótese tiver dez sistemas informáticos diferentes e quiser transferir um doente de um sítio para o outro, é um pesadelo de compatibilidades de modelos de dados e respetivos formatos. Um único sistema seria mais racional e economicamente melhor.

A que é que atribui essa incapacidade?

É multifatorial. Vem da negligência dos administradores, de uma estrutura que privilegia esse tipo de coisas, da legislação que facilita um tal funcionamento; por fim, tudo isso gera negócios e interesses laterais, que tolhem as decisões mais racionais. E quando o negócio se instala, gera os seus próprios agentes de defesa e paralisação da racionalidade dentro do sistema. E depois é como um cancro: infiltra-se no Estado, apodera-se das direções-gerais, dos partidos políticos… e é difícil retirar todas as partes daquele cancro.

O Estado tem de sofrer uma reforma muito grande, e não é em relação às suas funções: é reformar como atua. Isso começa nas leis. Não quero estar a fazer uma acusação direta, mas as nossas leis parecem feitas por escritórios de advogados para depois poderem lucrar com a confusão que criaram. Verifica-se que grandes escritórios de advogados fazem a promoção de interesses privados e corporativos junto do Estado. É toda esta cadeia intricada de interesses que se vão instalando e ganhando força, tornando o Estado ineficiente e incapaz de se regenerar. O nosso Estado é muito menos eficiente do que outros. Para fazermos as mesmas coisas, estamos a gastar muito mais dinheiro.

E a dificultar a prestação dos serviços, não é?

Claro. Está a sugar da economia muitos mais recursos para cumprir as mesmas funções. Assim, não liberta esses recursos para que a economia se renove. Por isso é que a nossa economia vai descendo a escada, enquanto outras vão subindo.