Francisco França tinha 21 anos quando decidiu enfrentar o mundo sobre duas rodas. Sozinho, percorreu 20 mil quilómetros de bicicleta, atravessando o continente africano de norte a sul. Hoje, com 23, recorda o início dessa aventura, a 19 de Fevereiro de 2024.

“Lembro-me de acampar ao lado de uma igreja, cheio de medo. Acho que, nesse momento, percebi a dimensão do que estava a começar”, conta ao P3.

O que estava a começar era uma viagem que o levaria por mais de 15 países: Marrocos, Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigéria, República do Congo, Angola, Maláui e Zimbabué – até chegar a Moçambique, em Maio de 2025.

A aventura começou em São João da Talha e terminou oficialmente a 14 de Junho de 2025, dia em que Francisco chegou a Maputo, a meta que tinha imaginado quando traçava os primeiros planos, anos antes.

Na bicicleta, levava apenas o essencial: uma tenda para dormir, um fogão a gasolina, roupa e ferramentas para a bicicleta. Escolheu este meio de transporte por ser fisicamente desafiante e por oferecer “uma perspectiva única, permitindo absorver tudo de forma diferente”.

“A qualquer lugar que chego, sei que foi com o meu esforço, com as minhas pernas. E isso dá uma sensação de realização diferente”, afirma.

“Muita gente, e percebo que não por mal, espelhava em mim os seus próprios medos em relação a África ou a viajar sozinho”





Com o tempo, criou a sua própria rotina: pedalava durante o dia, parava para comer em pequenas vilas ou em cruzamentos e, por volta das 15h ou 16h, começava a pensar onde iria dormir – no mato, numa escola, num posto da polícia.

Entre as muitas memórias, destaca os quase dois meses em Marrocos, a travessia da Mauritânia, a passagem por Angola e Moçambique e, sobretudo, a experiência única de pedalar pelo deserto do Saara.

“No deserto, durante duas ou três semanas, os meus dias eram simples: acordar cedo, pedalar, ouvir música e podcasts. Era só eu, a estrada e alguns camelos. Gostei muito disso”, recorda.

Outra lembrança especial vem do Senegal, onde ficou quase um mês com uma família. Francisco diz que estava a passar por uma aldeia, no seu terceiro ou quarto dia no país, quando ofereceu ajuda a um dos filhos da família que estava a arranjar a bicicleta junto à entrada da casa.

“Depois convidaram-me para almoçar com eles e ficar lá nessa noite. Depois, mais outra. Começámos a trabalhar juntos na apanha das mangas e, a certa altura, disseram-me que devia ficar até um dia especial – uma grande festa muçulmana, que ia acontecer dali a três semanas. E assim foi: acabei por ficar todo esse tempo. Foi incrível”, diz.




Foto tirada por Francisco na Botswana
DR

Recorda também um dos momentos mais stressantes da viagem: o receio de atravessar para os Camarões por mar. Conta que a praia de onde partiam as lanchas era uma “confusão enorme” e que a pequena embarcação onde seguia estava “completamente cheia de mercadorias”.

“Tivemos de colocar a bicicleta por cima e eu fui sentado no topo, com três ou quatro pessoas. O barco era pequeno demais para tanta carga. Quando chegámos a mar aberto, o motor avariou e ficámos à deriva no oceano durante quase uma hora. A tensão era palpável; dois dos homens começaram a rezar, até que, de repente, o motor voltou a funcionar. Depois de oito horas finalmente chegámos à costa dos Camarões”, relata Francisco.

“Queria enfrentar a situação, viver por mim próprio”

As aventuras de Francisco de bicicleta começaram aos poucos. Primeiro, com uma viagem de dois dias, da sua casa até à dos avós, onde conheceu um homem que tinha pedalado até ao Nepal.

“Foi uma inspiração enorme. Eu estava numa viagem tão pequena e, de repente, tinha à minha frente alguém que tinha feito algo tão grande. Pude ouvir histórias e experiências.”, recorda.

No ano seguinte, atravessou Portugal de bicicleta durante um mês, acampando em quintais, no mato, na praia. “Gostei daquela adrenalina, daquela sensação de levar tudo comigo”, diz.

Em 2023, depois de terminar a licenciatura em Psicologia e sem saber qual seria o próximo passo, decidiu transformar o sonho em realidade. Trabalhou num hostel e como promotor de eventos para juntar dinheiro.

Os medos foram muitos, conta. Os principais eram não conseguir cumprir o percurso, estar sozinho tanto tempo e todos os receios que as pessoas lhe transmitiam.

“Muita gente, e percebo que não por mal, espelhava em mim os seus próprios medos em relação a África ou a viajar sozinho. Isso assustava-me, mas quis enfrentar a situação e viver por mim próprio. Contrastava esses relatos com os de quem já tinha feito o que eu queria fazer”, explica.

O medo voltou a bater à porta quando adoeceu – três vezes. Duas com malária, na Serra Leoa e na Costa do Marfim, e uma terceira vez, no Senegal, com uma reacção alérgica inexplicada até o dia de hoje.

“A primeira vez que apanhei malária não consegui identificar os sintomas a tempo e fiquei muito mal, num hospital precário, sem água nem electricidade. Lembro-me de chorar muito, de não saber o que se estava a passar. Houve uma altura em que nem conseguia comunicar porque a rede caiu. E depois disso voltou a acontecer na Costa do Marfim, foi igualmente muito duro”, diz.

O jovem confessa que, por esses dias, “acabou por duvidar de tudo” e pensou que aquelas pessoas que lhe tinham desaconselhado “tinham razão.”

“Senti que tinha tomado uma decisão inconsciente e que tinha cometido um erro enorme. A recuperação demorou algum tempo: é preciso tomar medicação durante três ou quatro dias e depois ficar em repouso quase duas semanas, até conseguir voltar a pedalar e a fazer exercício”, acrescenta.

Também mentalmente a recuperação foi lenta, feita aos poucos. Francisco agarrou-se ao objectivo de chegar a Moçambique e ao entusiasmo de conhecer novos países ao longo do caminho. “Acho que foi isso que me manteve”, conclui.

“Uma ferramenta para inspirar outras pessoas”

De volta a Portugal, Francisco diz que, para além das memórias, trouxe muitas aprendizagens pessoais desta viagem.

“A [aprendizagem] que me salta logo à vista é perceber que, talvez, o mundo não seja tão perigoso quanto achamos”, afirma. “Às vezes, a nossa percepção de perigo tem mais a ver com os nossos próprios medos do que com algo real”, acrescenta.

Agora, sente que “não há impossíveis” e que “pode fazer quase tudo o que quiser”. “Sinto que tenho em mim uma ferramenta para inspirar outras pessoas. Até visitei algumas escolas durante a viagem porque percebi que esta experiência pode motivar alguém a fazer o que deseja”, explica Francisco França.

A quem queira fazer um percurso semelhante, recomenda aprender com pessoas que já passaram por isso, além de começar por viagens mais pequenas para testar o equipamento e fazer ajustes.


Quanto à próxima aventura, diz que ainda não sabe “como, onde, quando ou se sequer vai acontecer”, mas admite que gostava de fazer outra.

“Acho a Rússia, a China, o Japão e o Brasil muito interessantes. Gosto de viajar de bicicleta, por isso vejo-me a fazer mais coisas assim. Não tem de ser necessariamente nestes países, são lugares que gostaria de explorar. Mas isso não está na minha mente agora”, conclui.