A vitória extraordinária do jovem democrata Zohran Mamdani à Prefeitura de Nova York acabou por lançar à grande mídia o nome de Mahmood Mamdani, professor de Política e Antropologia na Universidade Columbia. Sua trajetória cosmopolita e sua notável produção intelectual estão diretamente relacionadas às arrojadas e progressistas propostas políticas do filho Zohran, em meio à crise democrática pela qual passam os Estados Unidos.

Nascido na Índia pouco antes da independência deste país, Mahmood Mamdani fez parte da diáspora indiana decisiva na história de países como Quênia, Uganda, Tanzânia, Moçambique e África do Sul. Ele cresceu em uma Uganda colonial e segregacionista e começou sua trajetória como pesquisador e professor na prestigiosa Universidade de Makarere, em Kampala. Essa primeira etapa acadêmica é interrompida em meio à perda da cidadania ugandense, seguida da expulsão da diversa comunidade definida como asiática pelo regime do ditador Idi Amin Dada em 1972.

Como refugiado no Reino Unido, Mamdani publica um pequeno volume precioso que anuncia uma verdadeira agenda de pesquisa e reflexão para as décadas seguintes. Em “De cidadão a refugiado” (1973), ele faz uma etnografia do cotidiano dos mais de 50 mil indivíduos forçados, ao longo de três meses, a abandonar um país que percebiam também como seu.

Da incredulidade inicial à corrida pelo acesso a vistos, da impossibilidade de permanecer na terra de origem à ausência clara de terra de destino (marca de apátridas e refugiados), Mamdani dialoga não explicitamente com o texto clássico publicado por Hannah Arendt em 1943 (“Nós, os refugiados”), situando a “questão indiana” em meio a tantas outras “questões” que acompanham a tragédia da formação estatal contemporânea, intrinsecamente ligada à expansão colonial.

Após o refúgio no Reino Unido e a docência na Universidade de Dar es Salam, na Tanzânia, Mamdani retorna ao seu país, onde assume seu lugar na Universidade de Makarere e funda o Center for Basic Research. De Uganda, já no início dos anos 1990, Mamdani se desloca para o olho do furacão, a África do Sul, que pretendia superar décadas de apartheid e promover a construção de um país para todos os sul-africanos. Parte do material sul-africano surge no clássico “Cidadão e Súdito” (1996), no qual Mamdani enfrenta a formação do Estado tardo-colonial e a insurgência característica da sociedade civil africana.

A clivagem entre cidadãos (e a luta por cidadania antirracista na África urbana) e súditos (e as rebeliões camponesas que alcançam o pós-colonial) constitui o legado a ser superado por uma África que trilha seu próprio futuro.

Lá Fora

Ao lado de toda uma geração de intelectuais africanos, Mamdani procura compreender como foi possível o genocídio em Ruanda no volume “Quando as Vítimas se Transformam em Assassinos” (2001). Mais recente, “Nem Colonos Nem Nativos” (2020) é uma obra de maturidade, de rara erudição e evidente compromisso político. Do genocídio indígena e escravização nas Américas às guerras sudanesas, passando pela Alemanha nazista e pela África do Sul do apartheid, o autor chega ao desafio que nos impõe Israel, onde o sonho sionista de “uma terra sem povo para um povo sem terra” deixa como legado contemporâneo o pesadelo palestino— expulsão, exílio, cidadania limitada, supressão de direitos e genocídio–, o massacre e a inviabilização da reprodução da vida.

Zohran Mamdani faz justiça a décadas de produção intelectual crítica de Mahmood Mamdani ao propor uma cidade que não expulse seus cidadãos, não os divida em maiorias e minorias, não promova o desespero da pobreza convivendo com a obscenidade da extrema riqueza. A luta pela justiça e pela igualdade atravessa a vida dos moradores de Nova York e deve alimentar a luta pela vida e toda a sua beleza em meio a um novo paradigma político que combata um sistema que ao longo dos séculos promoveu a vida de uns poucos e o extermínio e a dor de tantos outros. Zohran Mamdani tem e terá coragem, como todos os cidadãos de Nova York que o elegeram.