O Agente Secreto é um filme que irrita certas criaturas. Alfineta-lhes os rabos nas cadeiras da sala de cinema. Tem o condão de desmascarar o enfado dos simpatizantes da ditadura militar brasileira de 1964 que se deliciaram com os horrorosos anos de retrocesso cívico e económico do bolsonarismo. Sem nunca falar diretamente na ditadura, porém ambientado na cidade do Recife em 1977, vibra, endiabrado, contra “o tempo da pirraça”, como aqui se escreveu de Cannes em primeira mão, em Maio, onde a obra foi duplamente premiada.
No final de Julho, Kleber Mendonça Filho esteve em Lisboa e no Porto, a convite da distribuidora portuguesa do filme, a Nitrato, para uma ronda de antestreias da obra que também testou a recepção da mesma entre nós — um êxito assinalável. O Agente Secreto teve em Portugal algumas das primeiras sessões públicas pós-Cannes, muito antes de qualquer exibição no Brasil. Gravámos então no Porto uma longa entrevista de horas e fiz questão que a francesa Emilie Lesclaux, mulher do cineasta, produtora de todos os seus filmes desde a curta Eletrodoméstica (2005), deixasse por momentos a guarda dos dois miúdos do casal, os gémeos Tomás e Martin, de 11 anos, e se juntasse à conversa.
Conheci Emilie ao mesmo tempo que Kleber, em janeiro de 2012, no Festival de Roterdão, que exibiu em estreia mundial O Som ao Redor, primeira longa-metragem. É uma pessoa centralíssima na consistência e evolução artística do cineasta pernambucano, está sempre presente em todas as etapas de construção do filme, incluindo nas rodagens, porém nunca é mencionada — e isto é chocante — nas múltiplas entrevistas, críticas e reportagens que têm vindo a ser publicadas na Europa. Que a reparação seja agora feita, até porque vem a propósito.
O Agente Secreto aprofunda todas as preocupações temáticas de Kleber Mendonça Filho, usando uma narrativa complexa e uma reconstrução detalhada da época para explorar a história, a resistência e as feridas abertas da sociedade brasileira. É um filme de retratação de um país e de um período histórico, a partir da reconstrução de um certo carnaval pernambucano de 1977. Procura juntar um puzzle desfeito, um tempo fraturado, contra o galope do esquecimento de uma geração para outra. É um filme que quer sacudir dias resignados — e só fala de hoje, do primeiro ao último segundo.
[o trailer de “O Agente Secreto”:]
Na curta Eletrodoméstica (2005), o espaço era fechado, a lavandaria de uma habitação. Em O Som ao Redor (2012), já havia um apartamento e uma rua. No Aquarius (2016), podemos falar de um bairro inteiro do Recife. Em Bacurau (2019) já é o Brasil inteiro. Retratos Fantasmas (2023) documenta a partir do Recife todo um tempo de vivência brasileiro ligado ao cinema. E agora O Agente Secreto, em que o filme toca, com grande amplitude, em todas as ditaduras e totalitarismos do mundo. Estas circunferências foram-se alargando cada vez mais no seu trabalho. Porquê?
Kleber Mendonça Filho (KMF) — Isso faz-me lembrar uma pessoa muito querida, chamada Edna Cunha Lima, professora universitária da geração da minha mãe e mãe de grandes amigos. Quando ela viu Enjaulado e Vinil Verde, minhas curtas ainda anteriores a Eletrodoméstica, gostou muito e perguntou: “Mas quando é que você vai sair desse apartamento?” Nunca esqueci isso, foi um apontamento analítico, severo, no final se tornou carinhoso. Recife Frio [curta de 2009] já abria mais para a cidade, e os filmes começaram então a definir o espaço que precisavam para existir. Retratos Fantasmas está muito ligado ao Recife. O Agente Secreto, como você diz, está na cidade, mas é uma visão muito minha, e muito particular, a pensar no país e no seu lugar no mundo. A sua observação é muito curiosa, mas como eu sou responsável por ela, tenho alguma limitação em desenvolvê-la.
Emilie Lesclaux (EL) — É lógico alguém começar por filmar coisas práticas, com pequenos orçamentos, e começar pela nossa casa, pela casa do vizinho, como em O Som ao Redor. Era o tempo em que usávamos a nossa casa como set, campo de treino.
O clip de apresentação da vossa produtora, a Cinemascópio, é um pátio dessa casa, certo?
EL — Sim, é na casa, cortámos um pedacinho de um material bruto em película de O Som ao Redor.
Há uma altura em O Agente Secreto que a audiência percebe que Marcelo, a personagem de Wagner Moura, se chama afinal Armando e usou aquele nome falso por segurança. No Recife, ele encontra e é ajudado por outras pessoas que também usam nomes fictícios. A história dessa resistência à ditadura brasileira que se fazia nas famílias, nos quartos e salas, entre quatro paredes, está ainda hoje por contar?
KMF — É muito interessante falar disso porque essa resistência, pelo menos nos últimos dez anos da ditadura, foi sempre um movimento natural, não organizado, que ia apoiando quem precisava, um ativista, um artista, alguém ligado aos jornais… Essa ajuda vinha, muitas vezes, de filhos ou herdeiros de famílias ricas e conservadoras das grandes cidades, como a Elza no filme, a personagem interpretada pela Maria Fernanda Cândido, que é uma espécie de “puppet master”. É uma guerrilheira na sombra, nunca mostra o mecanismo do movimento. Acho muito mais fértil contar a história dessa resistência de relance do que fazer um filme sobre isso. A gente fica fascinado por aquele mistério e pela presença da Maria Fernanda, com aquele jeito dela de “star quality” de filme americano, ao mesmo tempo super-realista e mundana na maneira como ela fala.
EL — Historicamente, a Elza também representa um movimento de apoio à “fuga de cérebros” que procurou levar universitários, professores, intelectuais para fora do Brasil naquele tempo, pois já haviam sido marcados pela ditadura. Estavam listados.
Pessoas como o Marcelo…
KMF — A história estabelece que ele tem uma relação académica muito sólida, com boas relações internacionais, e que é preciso preservar a sua existência física. Esse êxodo de talentos aconteceu muito no Brasil. Quem estava fora, pensava: “vamos tirar esse cara de lá, antes que seja tarde.” A gente vê isso acontecendo hoje com os artistas plásticos e os realizadores iranianos por exemplo, o Rasoulof, o Panahi…
O Agente Secreto tem 2h38 e nunca ouvimos, de forma direta ou indireta, a palavra “ditadura” ao longo do filme. Isso foi propositado?
EL — Já O Som ao Redor não tinha a palavra “racismo” em nenhum momento. Mas esse clima está lá, vai afetar a vida de toda a gente.
A verdade é que não precisamos de conhecer uma linha da história política do Brasil no século XX para entendermos que estamos em terreno oprimido, desde a cena inicial da bomba de gasolina.
KMF — Acho que este guião foi escrito com muita ironia e estou curioso para perceber como vai ser recebido no Brasil. Por exemplo, o embate entre o Marcelo e a personagem de Ghirotti (Luciano Chirolli), com aquele duelo: “Você é um comunista? Ou um capitalista?”.
O Ghirotti é vil. Há um cinismo repugnante na personagem. Quando cria um vilão, ele tem der ser muito mau?
KMF — Ele é um cara que segue à risca um programa político do sudeste, das grandes metrópoles, onde está o poder, e acha que o Brasil só pode ser de um certo jeito. E é evidente que, no Nordeste de 1977, vai correr mal porque o Nordeste era de esquerda, que ainda tem hoje uma votação muito significativa. Não mudou muita coisa desde o tempo da acção do filme para cá, sabe? Até há pouco tempo, um certo político fazia piadas do Nordeste que eu julgava já aposentadas. Continuava dizendo que temos cabeça chata, somos preguiçosos e que o resto do país carrega o Nordeste nas costas. Que a gente vota mal porque, no Nordeste, ele perdeu em todos os Estados. Seu nome é Bolsonaro. Esse pensamento do personagem do Ghirotti ainda é muito verdadeiro hoje. Está também muito presente em Bacurau.