José Jorge Letria é um divisor de águas na rádio do Estado: “Na Emissora Nacional a música é outra”, celebra o Diário de Lisboa, esqueçam o António Calvário ou o Gabriel Cardoso, acabou a “capelinha” que “todos gozavam à grande e à francesa”. “Ao contrário do que tem acontecido noutros organismos, na Emissora Nacional o saneamento foi rápido e efetivo”, reflete o crítico de música Mário Vieira de Carvalho. Os pensamentos deste crítico carregam um peso institucional após o 25 de Abril: logo em maio, a Junta de Salvação Nacional reuniu uma plêiade de intelectuais, incluindo Mário Vieira de Carvalho, para definirem a política cultural do país, em coordenação com a recém-criada Comissão de Cultura e Espetáculos do MFA. Mário Vieira de Carvalho apresentou um plano, justificado no Diário de Lisboa, de “sanear” a música portuguesa, entre outros, as direções do Conservatório Nacional, do Teatro São Carlos e a da Gulbenkian — neste último, foi particularmente bem-sucedido, contribuindo para a pressão que levou ao despedimento de Madalena Perdigão. E a “música ligeira”, vejam bem, sequer devia existir, a sua “ação dissolvente e estupidificante” somente “explora” o lucro e “neutraliza” a “luta de classes”.
Houve uma segunda personalidade musical convocada pela Junta de Salvação Nacional: Fernando Lopes-Graça. Após décadas de perseguição e apagamento — sinalizado pela PIDE como militante “subversivo” do Partido Comunista Português (PCP), e “segundo consta”, “homossexual” — o prodigioso compositor tornou-se um representante oficioso do novo regime, com o seu reportório integrado na maioria dos eventos musicais organizados pelo MFA. As editoras estavam atentas: até ao final do ano lançaram, pelo menos, cinco álbuns de Lopes-Graça, iniciando a discografia pela profética Acordai das Canções Heroicas, que abriram caminho para a canção de protesto como hoje a conhecemos. No ano seguinte, Mário Vieira de Carvalho e Fernando Lopes-Graça fizeram campanha pelo PCP.
Um cordão de braços dados, em desfile, ocupa o Rossio. De arrasto, uma multidão. O trânsito é interrompido e os bombeiros gerem a ocorrência, mais um dia caótico no centro da cidade, já não basta a animação diária aqui na praça, a azáfama de vendedores ambulantes de estendal no passeio — é fruta, é peixe, é bugigangas, é de aproveitar enquanto não voltam as multas. Na frente, Amália Rodrigues, de cravo na mão, acompanhada por António Mourão, fadista sex symbol de eterno bronze e camisa aberta, até em período revolucionário, e acreditem, ainda Simone de Oliveira, Artur Garcia, Max, Rui de Mascarenhas, Júlia Babo ou Fernando Farinha, a nata da “música ligeira” a pisar a calçada, entre os comuns mortais. Os músicos sobem à Praça de Luís de Camões e, nas barbas do poeta, em frente a um imenso séquito, cantam Grândola, Vila Morena.
Ao longo do desfile, erguem as faixas “A canção está na rua” e “Somos a canção que somos”. A primeira mensagem era um grito de ordem ubíquo, em concordância com os camaradas da intervenção. A segunda faixa é mais difusa, está nas entrelinhas, passo a esclarecer: somos a canção que somos, sem vergonha, seja romântico, fadista, folclorista ou pop star, e também queremos fazer parte deste novo país. “Consideram-se lesados por atitudes que apelidam de discriminatórias”, esclarece a revista Gente. A manifestação era uma estratégia de promoção de guerrilha, já que mal passam na rádio, para anunciar um concerto no final da semana, no Coliseu dos Recreios, com os lucros a reverterem para o Sindicato dos Profissionais de Teatro, Bailado, Circo e Variedades.