Uma empresa familiar tem vindo a transformar 25 hectares num festim para a criatividade nas áreas da Arquitetura e Design. Uma aventura extraordinária a que agora se junta um retiro imaginado pelo Pritzker indiano Balkrishna Doshi, que nos convida a “elevar o espírito.”
“Jornada” tem diversos significados. Sabemos nós e diz-nos o dicionário. Mas aqui convocamos a definição que remete para viagem e, em sentido figurado, “para o conjunto de factos passíveis de serem entendidos como uma transição, rumo a determinado fim.” Um limiar, portanto. É precisamente essa a sensação inicial que o mais recente projeto a ganhar forma no campus Vitra nos provoca, quando nos adentramos pelo caminho serpenteante e entrelaçado, em que vamos perdendo a noção do espaço envolvente e mergulhamos no som que nos guia ao coração de um retiro.
Poesia? Devaneio? Já o gongo que espraia o som nos recebe numa câmara despojada, também ela em tons quente-laranja-ferrugem-ocre, como a escultura-edifício que acabámos de percorrer. Dois bancos em semicírculo, contornados por um espelho de água, convidam-nos a respirar. A estar, muito simplesmente. Presentes e ausentes. Ao som do suave gongo. Aqui, no Doshi Retreat.
“Doshi construiu pontes entre Oriente e Ocidente, entre ciência e espiritualidade, entre tradição e modernidade, e o seu mundo era um mundo de humildade, generosidade, humor e reconciliação.” A admiração e estima de Rolf Fehlbaum, presidente emérito da Vitra, pelo arquiteto indiano Balkrishna Doshi ressoa em cada palavra que usa. “Aprendi muitas coisas com Doshi que não sabia antes. E todos podem aprender com ele. O retiro é uma espécie de convite de Doshi para uma viagem que transcende o quotidiano e eleva o espírito,” refere aquando da apresentação do projeto à imprensa.
Uma experiência sensorial
Falar na espiritualidade dos edifícios pode fazer erguer uns quantos sobrolhos. Nada que detivesse Rolf Fehlbaum, 84 anos, a segunda geração a liderar a Vitra – a empresa familiar criada em 1950, em Basileia, Suíça, por Willi e Erika Fehlbaum, conhecida em todo o mundo por criar produtos e conceitos inovadores com grandes designers – e homem de grande racionalidade, como o próprio diz, de convidar o Pritzker indiano a idealizar um espaço que seja uma “experiência sensorial”.
A ideia não é fruto de um capricho, mas sim de uma viagem à Índia, em que Fehlbaum e a mulher, Federica, visitaram o Templo do Sol Modhera, no Gujarat. E da profunda serenidade que aí sentiram. Estávamos em 2020. O mundo era diferente, mas a ideia de o campus Vitra funcionar como uma “biosfera” já estava em marcha havia algum tempo, sintetiza Rolf Fehlbaum. Os cerca de 25 hectares do campus não só acolhem as fábricas onde se produzem algumas das peças mais icónicas do design, a edifícios de renomados arquitetos – incluindo oito Pritzker –, passando pelos muitos visitantes que diariamente exploram o campus. Por ano, rondam os 400 mil. Um número bem-vindo, claro, mas que levou Rolf Fehlbaum a considerar ser o momento de acolher um lugar de contemplação como contraponto “às muitas atividades que aqui temos.”
“E se…?”
O tom estava dado. Palavra a Khushnu Panthaki Hoof, neta de Balkrishna Doshi, arquiteta e discípula do seu avô, que tinha o dom natural para ensinar, sem o admitir, de abrir caminhos para evitar que o pensamento estreitasse, e para quem a aprendizagem “é algo de muito fluido e presente ao longo da vida”. Para o avô, o mundo tinha inúmeros mundos dentro, caminhos mil. Não era dispersão. Era abrir a mente. “E se?”. Essas perguntas que começavam com “e se”, explica, “traziam à tona as conversas mais inesperadas e profundas, que abriam diferentes maneiras de ver as coisas”, partilha Panthaki Hoof. “Mas, acima de tudo, o que ficou connosco e continua a guiar-nos é algo que ele disse enquanto trabalhávamos neste projeto. Doshi disse que o silêncio é a forma mais generosa de orientação.”
Balkrishna Doshi morreu em janeiro de 2023, aos 95 anos. Não viu de pé a escultura que imaginou. O primeiro edifício construído fora do seu país. Ele que “ao longo dos anos, sempre criou uma arquitetura que é séria, nunca espalhafatosa ou seguidora de tendências. Com um profundo sentido de responsabilidade e um desejo de ajudar o seu país e o seu povo através de uma arquitetura autêntica de alta qualidade.” Recordamos as palavras do júri que lhe atribuiu o mais importante prémio de arquitetura, o Pritzker, em 2018. Tinha 90 anos. Na ocasião, agradeceu a Le Corbusier, com quem trabalhou, os ensinamentos que lhe permitiram introduzir o modernismo no seu país, criando uma síntese com as tradições locais. E sintetizou a sua demanda. “O meu trabalho, a minha história de vida, está sempre em evolução, em mudança… uma procura no sentido de retirar o papel da arquitetura e olhar apenas para a vida.”
A responsabilidade de erguer o Doshi Retreat ficou, assim, nas mãos da neta, Panthaki Hoof, e do seu marido, Sönke Hoof, a dupla que lidera o Studio Sangath, em Ahmedabad, Índia. Escolheram seguir o caminho das perguntas. “Como é que se descodifica uma memória emocional num espaço? É um lugar onde fazemos uma pausa, onde simplesmente estamos?”, questiona Panthaki Hoof. Mais importante. “O que queremos que as pessoas sintam naquele espaço?” Esta pergunta passou a ser a bússola que os guiou nesta jornada. E, claro, outras surgiram. O que é o tempo na arquitetura?
O espaço pode curvar o tempo? Pode confundi-lo? Pode dissolvê-lo? “Pode a desorientação ser usada como ferramenta de design para nos ajudar a esquecer de nós próprios? E, nesse momento de esquecimento, descobrimos algo novo”, diz Panthaki Hoof, antes de nos deixar uma última pista. [O retiro] “é um limiar. Um lugar de transição suave. E contém algo de intangível.” Sim, o Doshi Retreat é uma experiência que desafia definições. Mas abre-se à interpretação e ao diálogo. Em tempos conturbados não será esse o caminho a seguir?
O Jornal Económico viajou a convite da Vitra.