Opinião
A coisa julgada, no novo regime inaugurado pelo Supremo Tribunal Federal, e a escultura inacabada de Auguste Rodin compartilham um mesmo paradoxo: a não definitividade como traço essencial, embora com sentidos opostos. Em Rodin, o non finito é fonte de beleza e verdade, pois o inacabado preserva o movimento e a vitalidade da criação; já na coisa julgada, essa mesma indefinitividade assume contornos de fragilidade e insegurança, transformando aquilo que deveria ser definitivo em algo instável.
Rodin, ao deixar propositadamente partes de suas esculturas por concluir, inaugurou o conceito do non finito moderno, recusando a ideia de acabamento absoluto. Suas figuras, emergindo do bloco de mármore ainda bruto, parecem lutar para nascer — como se o próprio material resistisse à forma, denunciando a precariedade da criação e a incompletude essencial da arte.
Assim é O Pensador, que, nas rugosidades e nas marcas da talhadeira, conserva o inacabado deliberado, revelando o próprio processo criativo — como se o corpo ainda guardasse o vestígio da pedra de onde emergiu. Em outras obras, como O Homem que Anda ou A Porta do Inferno, Rodin expõe a passagem do informe — a matéria bruta, ainda sem forma definida — ao humano, no instante em que o vir-a-ser ganha contorno e se transforma em ser.
O non finito de Rodin inaugura, na escultura moderna, o conceito de inacabado como valor estético, rompendo com o ideal de perfeição e completude das tradições clássicas.
De modo análogo, a coisa julgada, tradicionalmente concebida como o momento de fechamento da atividade jurisdicional, atravessa um processo de desestabilização.
Essa abordagem foi desenvolvida em minha obra A Coisa Julgada nas Relações Jurídicas de Trato Continuado (Lumen Juris, 2025), na qual analiso como o Supremo Tribunal Federal vem promovendo uma verdadeira mutação no conceito clássico de coisa julgada — substituindo a estabilidade pela revisibilidade institucional.
O Supremo Tribunal Federal, nos Temas 881 e 885 e na AR 2.876/DF reconfigura o sentido de definitividade que a consagrava, submetendo-a a um regime de instabilidade controlada [1]. A decisão que antes se erguia como mármore polido — resistente à erosão do tempo e das vontades — agora se assemelha ao bloco rodiniano, do qual novas formas podem sempre emergir sob o cinzel da interpretação constitucional superveniente.
Esse novo regime da coisa julgada, inaugurado pelo STF, condiz com a própria dinâmica desse instituto, que reflete os diferentes cenários políticos e sociais que caracterizam cada estágio histórico.

Assim como a sociedade está em permanente transformação, a coisa julgada também se revela como um processo em constante construção — um organismo vivo do sistema jurídico, que se ajusta às novas concepções de justiça, às mudanças institucionais e às demandas de seu tempo. Entre os institutos do direito, é talvez aquele que mais traduz o movimento histórico, refletindo as tensões e os valores de cada contexto político e social.
Do mesmo modo que a arte de Rodin traduz o movimento e o inacabamento da forma — a passagem constante entre a matéria e o espírito —, a coisa julgada reflete, entre os institutos jurídicos, aquele que melhor expressa e reverbera a própria evolução da sociedade, revelando-se como uma construção histórica em permanente transformação.
Percurso histórico e a instabilidade global
O estudo da sua trajetória evidencia que a coisa julgada não é uma estrutura fixa, mas a manifestação das circunstâncias históricas, políticas e sociais que configuram cada período, espelhando, em sua evolução, o próprio percurso da humanidade e das sociedades em transformação. Desde o Direito Romano, em que a res iudicata se vinculava à necessidade de segurança nas relações privadas, até as concepções modernas de Liebman, Barbosa Moreira e Ovídio Baptista da Silva, a coisa julgada tem evoluído em sintonia com as transformações da sociedade e do Estado.
Cada período histórico projetou sobre o conceito de coisa julgada a sua própria visão de mundo. No Império Romano, prevalecia a ideia de estabilidade porque a “coisa” havia sido julgada. Na Idade Média, sob forte influência da Igreja e da filosofia escolástica, buscava-se na coisa julgada uma presunção de verdade, necessária em tempos de insegurança e fragmentação política. Já com o Iluminismo e o Estado Liberal, a ênfase deslocou-se para a segurança individual e a certeza das relações jurídicas, expressando a racionalidade normativa da modernidade.
Com o surgimento do Estado Social e Democrático de Direito, o conceito de coisa julgada começou a ser repensado sob uma ótica funcional e valorativa: a estabilidade jurídica passou a coexistir com a necessidade de justiça material e de adaptação do direito às mudanças sociais. Assim, a coisa julgada deixou de ser apenas o símbolo da imutabilidade das decisões judiciais para se tornar um instrumento de equilíbrio entre segurança e mutabilidade.
Nesse contexto, a recente modificação da coisa julgada promovida pelo STF — nos Temas 881 e 885 e na AR 2.876/PR — reflete o atual cenário político e social de instabilidade global, no qual o direito procura responder a uma realidade caracterizada por mudanças aceleradas, crises institucionais e releituras contínuas da Constituição.
A evolução recente da coisa julgada no Supremo Tribunal Federal revela uma profunda reconfiguração de seu significado tradicional. Nos Temas 881 e 885 da repercussão geral (2023), o STF rompeu com a concepção clássica de estabilidade e segurança jurídica, ao admitir que os efeitos de sentenças transitadas em julgado cessam automaticamente diante de novo entendimento constitucional, ainda que posterior e sem necessidade de ação rescisória. Essa inflexão instaurou um cenário de entropia normativa, marcado pela perda de previsibilidade e pelo enfraquecimento da confiança na definitividade das decisões judiciais.
Posteriormente, o Tema 100 (RE 586.068/PR) representou um esforço de reconstrução, ao estabelecer critérios para compatibilizar a coisa julgada com a supremacia da Constituição, distinguindo os efeitos conforme a anterioridade ou a posterioridade do precedente de inconstitucionalidade. Essa tentativa de recompor o equilíbrio entre estabilidade e mutabilidade do direito expressa a busca por um modelo de instabilidade controlada, no qual a definitividade se torna condicional à conformidade com a jurisprudência constitucional.
Essa linha evolutiva culminou na Ação Rescisória 2.876/DF (2025), em que o STF conferiu a si mesmo o poder de modular, caso a caso, os efeitos temporais de suas decisões e reconhecer a inexigibilidade de títulos judiciais mesmo quando a declaração de inconstitucionalidade for posterior ao trânsito em julgado. Ao fazê-lo, o Tribunal consolidou a prevalência da supremacia constitucional sobre a estabilidade das decisões.
Esse novo regime de coisa julgada, dependente da conformidade com a jurisprudência do constitucional posterior reflete o momento político e social de instabilidade global, em que o direito busca responder a uma realidade marcada por mudanças aceleradas, crises institucionais e reinterpretações constantes da Constituição.
No entanto, essa transformação, embora justificada pela supremacia da Constituição, fragiliza a previsibilidade e a segurança jurídica, substituindo a ideia de definitividade por uma estabilidade precária e sujeita a revisões contínuas.
A institucionalização do non finito
Assim como nas esculturas de Rodin, a coisa julgada contemporânea parece converter-se em um bloco de mármore em permanente esculpimento — símbolo de uma estabilidade transitória, em que o direito é constantemente remodelado pela interpretação constitucional.
No entanto, o gesto artístico e o gesto jurisdicional diferem em sua finalidade. Rodin revela o inacabamento como beleza; o direito, ao acolhê-lo, corre o risco de dissolver a segurança. O mármore inacabado ainda é arte; mas a sentença inacabada — sempre aberta à revisão — ameaça a confiança e o sentido mesmo da justiça.
A reconfiguração da coisa julgada promovida pelo STF fragiliza a segurança jurídica e o princípio da confiança legítima, ao converter o instituto — outrora expressão de estabilidade e definitividade — em uma forma permanentemente exposta a novas reinterpretações.
Enfim, a coisa julgada deve ser compreendida como um espelho da evolução das sociedades humanas. Sua reconfiguração contemporânea revela a tradução jurídica das incertezas e dinâmicas do nosso tempo.
O STF, ao relativizar a imutabilidade da coisa julgada, parece institucionalizar o non finito no Direito, cuja validade depende da conformidade com a jurisprudência constitucional posterior. A decisão judicial, antes encerrada pelo trânsito em julgado, passa a ser matéria viva, sujeita à reescultura pela Corte sempre tensionada pela força interpretativa da Constituição. Essa transformação, embora justificada pela supremacia da Constituição, fragiliza a previsibilidade e a segurança jurídica, substituindo a ideia de definitividade por uma estabilidade precária e sujeita a revisões contínuas[2].
Desse modo, o paralelo entre Rodin e a coisa julgada evidencia a tensão que marca o processo civil brasileiro contemporâneo — a substituição da forma estável pela forma em fluxo. Se a coisa julgada representa o instante em que o Estado promete repouso e certeza, a jurisprudência recente parece retomar o cinzel, e cada novo golpe, ainda que guiado pela Constituição, faz ecoar não a beleza da criação, mas a incerteza e a instabilidade de um direito em constante reescultura.
[1] Ver aqui: COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. Decisão, caos e reconstrução: universo Marvel e colapso dacoisa julgada na nova reconfiguração do STF. CONSULTOR JURÍDICO, 2025
[2] COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. A coisa julgada nas relações de trato continuado. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025.