Abbas Kiarostami dizia que o automóvel era, para ele, “um refúgio, um confessionário e um escritório”. E mais do que um adereço, um instrumento narrativo e um dispositivo visual omnipresente na sua obra (ver Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, O Sabor da Cereja ou Dez) e usado no cinema iraniano em geral. Num regime autocrático como o do Irão, o automóvel funciona, para um cineasta, como um espaço móvel de privacidade e de liberdade, em que se pode falar e filmar ao abrigo de olhos e ouvidos indiscretos (e escapando à necessidade de autorização oficial) — e de novo segundo Kiarostami, oferece o ambiente ideal “para as personagens femininas se expressarem à vontade”.
Que o diga Jafar Panahi, que recorreu ao automóvel para fazer, clandestinamente, um dos seus melhores filmes, Táxi de Jafar Panahi (2015) (os carros tem também um papel importante em Três Rostos (2018) e Ursos Não Há (2022)). O seu filho, Panar Panahi, seguiu-lhe as pisadas na estreia na realização, Estrada Fora (2021), um road movie carregado de significado social e político. E no novo filme de Jafar Panahi, Foi Só Um Acidente, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, há uma velha e batida carrinha que é fundamental para o enredo, já que é dentro dela que se passa uma boa parte da ação.
[Veja o “trailer” de “Foi Só Um Acidente”:]
Apesar do governo do Irão ter anulado recentemente a medida que proibia Panahi de filmar (e que ele sempre ignorou), o realizador disse numa entrevista dada antes da estreia mundial de Foi Só Um Acidente, em Cannes, que mesmo assim rodou esta fita em segredo (a censura estatal nunca teria aprovado o argumento), recorrendo a “uma equipa e um elenco muito reduzidos”. E tirando o máximo partido, em termos dramáticos e cinematográficos, do limitado espaço para passageiros e carga da banal carrinha do protagonista, Vahid (Vahid Mobasseri), um garagista e mecânico que tem um encontro que o vai abalar até ao âmago.
Vahid julga reconhecer, num cliente que atropelou um cão quando seguia no seu carro com a família e lhe vem pedir assistência, Eqbahl, o homem que o torturou sadicamente quando esteve preso nas cadeias do regime, e que o deixou com sérias lesões físicas. O ranger da perna postiça do homem, um som de que nunca mais se esqueceu, tê-lo-á denunciado (era por isso conhecido por Perna de Pau entre os detidos). Perturbado e enraivecido, Vahid quer vingança a todo o custo, e quanto mais depressa, melhor. Rapta o seu suposto torcionário, manieta-o, mete-o na carrinha e vai enterrá-lo vivo nos arredores da cidade.
[Veja Jafar Panahi falar sobre “Foi Só Um Acidente”:]
Mas entre duas pazadas de terra, o homem diz que não é o tal Eqbahl e não conhece Vahid de lado nenhum, que não é um torcionário, mas sim um cidadão comum, chora e suplica, explica que perdeu a perna num acidente que teve recentemente, que tem uma mulher grávida e uma filha pequena e nunca fez mal a ninguém. Assaltado pela dúvida, Vahid embarca numa série de decisões que o levam a outras tantas pessoas, à procura de respostas e de solução para a angústia que o invade.
Após andar de Herodes para Pilatos com o raptado, a carrinha de Vahid fica cheia de pessoas que estiveram presas e foram seviciadas por Eqbahl. Consegue alguém identificá-lo sem sombra de dúvida? O que fazer àquele homem. E as coisas complicam-se ainda mais quando Vahid atende uma chamada no telemóvel do raptado.
[Veja uma sequência do filme:]
Foi Só Um Acidente é um filme de uma exasperação, uma frontalidade e uma revolta pouco vistas na obra de Jafar Panahi. O realizador retira-se para trás da câmara, ao contrário dos seus últimos filmes, de que era protagonista, para dar destaque e voz às personagens, que se queixam alto e bom som, com muita raiva e dor, das arbitrariedades, da opressão e da violência do regime dos mollahs, quais porta-vozes de todo o povo iraniano — e também do próprio Panahi. Que através desta farsa negra sobre quatro rodas, reflete sobre a validade e a legitimidade da vingança, e a possibilidade e o valor de concedemos misericórdia a quem nos fez sofrer.
Este dilema moral posto a Vahid e às outras vítimas de Eqbahl fica vivo mesmo até ao plano final de Foi Só Um Acidente, que nos deixa também na dúvida sobre a própria posição de Panahi sobre a situação encenada no filme. O qual, e também devido a essa invulgar veemência e desassombro do realizador, se torna muito demonstrativo, sinalizado com insistência e repetidamente sublinhado, o que lhe afeta o fervor do gesto e diminui o impacto do discurso. Jafar Panahi é um grande realizador, e tem todo o direito à indignação e à revolta, mas o tom exacerbado e o traço grosso não são seus e não lhe ficam bem. E impedem Foi Só Um Acidente de se igualar aos seus mais memoráveis filmes.