Fundadora e CEO da Defined.ai, a empresa de origem portuguesa mais reconhecida no mundo da inteligência artificial, Daniela Braga tem vivido entre Seattle, Lisboa e, mais recentemente, Riade, na Arábia Saudita. Acredita que a inteligência artificial (IA) é “a nova revolução industrial”, que Portugal pode ser relevante neste ecossistema e que a maior mudança de todas será na educação: “O futuro pertencerá a quem compreender melhor a componente humana do que a tecnológica. Será melhor estudar filosofia do que programação.”
Como tem evoluído a missão da Defined.ai? Ainda são uma plataforma de recolha e processamento de dados para alimentar a IA?
Tenho muito orgulho em dizer que nunca mudámos de rumo, apenas renovámos a imagem. Continuamos a ser o fornecedor de dados de treino para inteligência artificial, de forma responsável e completa, do início ao fim. Antes de se falar em “dados responsáveis”, já o fazíamos. Fomos pioneiros nessa matéria.
Mesmo antes da entrada em vigor do RGPD, recolhíamos o consentimento dos colaboradores da nossa comunidade, fazíamos a anonimização dos dados e remunerávamos todos. São princípios que sempre nos distinguiram e que agora estão, finalmente, a ser reconhecidos.
Ou seja, a ideia inicial estava certa.
Esteve sempre certa. O que fizemos ao longo dos anos foi aumentar o leque de produtos. Temos mais produtos agora. Dentro da área de dados, mas continuamos a vender dados — e assim continuaremos.
Aqui na Web Summit, ouvimos o Governo e a Microsoft a anunciarem grandes investimentos em IA em Portugal. A Daniela também anunciou que quer investir em Sines. Há aqui uma oportunidade real para Portugal ter um papel relevante?
Defendo isso há pelo menos cinco anos. A ideia da giga factory nasceu de uma proposta minha ao então primeiro-ministro António Costa: criar um centro de excelência de IA em Portugal. Mobilizei metade do país para acreditar que Portugal podia ser um player europeu de referência e distinguir-se numa área específica da IA no mundo. É bom ver que, às vezes, o timing certo não é quando queremos, mas quando é possível — e agora é.
O investimento da Microsoft valida precisamente essa visão. O nosso consórcio, que ainda está a ser estruturado, será o único centrado em dados — há muitos a apostar na computação, mas poucos na recolha e tratamento dos dados. É essa experiência que trazemos.
Actualmente, onde estão os maiores estrangulamentos no desenvolvimento da IA? Imagino que responda “nos dados”…
Sim, nos dados, naturalmente. Fala-se num funil dos dados públicos — não porque tenham desaparecido, mas porque os que existem foram explorados até à exaustão. A maioria dos dados está no sector privado, inacessível. É nesse mercado que actuamos: dados comissionados, de origem humana, com qualidade e legalidade garantidas.
Mas com a evolução dos dados sintéticos (criados por IA), não há o risco de a Defined.ai se tornar irrelevante?
Não, de maneira nenhuma. Há também espaço para dados sintéticos, que são úteis para treinar modelos em situações raras ou extremas. Mas se os modelos forem treinados apenas com esse tipo de dados, ocorre o chamado model collapse: é a fotocópia da fotocópia, a qualidade degrada-se.
O nosso valor está no toque humano — todos os dados que fornecemos são validados por pessoas. Mesmo quando há geração sintética, há sempre supervisão humana.
Isso significa que os modelos generativos, como o ChatGPT, baseados na recolha de dados estão a atingir o limite? Estamos a viver numa bolha que pode rebentar?
Não. Trabalho nesta área há 25 anos. Já vivi longos “Invernos” e curtos “Verões” da IA, mas este é diferente: é o Verão mais longo — e está para ficar. Não é um fenómeno passageiro como a Web3 ou o Metaverso. É uma revolução comparável à da Internet ou ao smartphone.
A diferença é que agora as revoluções acontecem em intervalos de dez anos, não em séculos. É o ciclo natural da inovação.
Essa velocidade de evolução pode trazer problemas graves? A minha filha de 16 anos queixa-se de que os colegas usam IA para tudo e acham que já não vale a pena estudar. Criámos uma ferramenta poderosa de mais, sem saber usá-la?
Partilho da preocupação. A minha filha também tem 16 anos e vive o mesmo. Esta geração questiona o valor da escola e do conhecimento académico tradicional — e, de certa forma, com razão. Estão mais bem preparados para se adaptarem às ferramentas do que nós, mas preocupam-me a superficialidade e a falta de espírito crítico na verificação das fontes. Eles seguem a informação de acordo com os pares e não tentam ir ao fundo da questão. De perceber: será que isto é uma fonte que eu devo usar?
O modelo de ensino actual não está preparado para esta revolução. O conhecimento técnico vai tornar-se rapidamente obsoleto — o que permanecerá relevante é o humano.
Acho que, nas gerações futuras, os que vão ter mais sucesso são precisamente aqueles que conseguem entender a componente humana. Esses vão ter mais sucesso do que aqueles que vivem só na relação com a tecnologia. Por muito controverso que isto seja vindo de alguém da tecnologia.
Mas com uma formação base que não é na tecnologia.
Exactamente. Vai ser a componente humana. É por isso que, muitas vezes, quando vejo a minha filha mais centrada na componente social e menos interessada nas dimensões académicas, considero que se trata de uma vantagem e não uma fraqueza para o futuro dela.
Os jovens deviam dedicar-se mais ao social, ao pensamento crítico, à ética, à empatia e à criatividade. É isso que os vai diferenciar da IA.
E como se redefine o valor profissional num mundo em que o trabalho técnico pode ser automatizado?
Já se sente algum desemprego qualificado, sobretudo nos EUA, entre profissionais de software. Eu, por exemplo, viajo muito entre a Costa Este e a Costa Oeste dos EUA. E, neste ano, tenho notado desemprego de pessoal qualificado. É um bocado assustador. Vê-se muita gente que trabalhava em empresas tecnológicas a conduzir ubers.
Os governos têm de planear esta transição, porque o trabalho intelectual será mais rápido e barato feito por IA — embora nem sempre melhor.
Curiosamente, o trabalho manual pode vir a ser mais bem pago do que o intelectual. É quase o oposto da revolução industrial. A robótica está a evoluir, mas haverá um período em que o trabalho humano voltará a ganhar valor.
Mas os enviesamentos dos modelos de IA não continuam a ser um problema?
Sim, mas hoje há maior consciência disso. Há dez anos, quando surgiram os primeiros modelos da Google, IBM ou Apple, esse tema quase não existia. Agora, todos têm essa preocupação, embora os modelos ainda estejam longe de ser perfeitos.
É essencial definir “leis do modelo”: o que pode e o que não pode fazer. Nem todas as empresas dão prioridade a estes princípios porque há uma corrida para chegar primeiro. O enviesamento ideológico, em particular, é dos mais perigosos. A regulação — como o AI Act europeu — é indispensável.
Mas é possível regular a tempo esta transformação? Temos verificado que os governos têm dificuldade em acompanhar o ritmo da evolução tecnológica.
A humanidade é resiliente e adapta-se. Haverá sempre danos colaterais, mas aprendemos depressa — agora em rede, à escala global. É um privilégio viver nesta época, mesmo que por vezes seja assustadora.
Por falar em global, tem estado a investir na Arábia Saudita. Como tem sido essa experiência?
Foi o embaixador português Nuno Matias quem me convenceu a olhar para a Arábia Saudita de outra forma. O país quer ser potência mundial em IA até 2030 e está a atrair empresas internacionais com uma rapidez impressionante.
Estamos a abrir escritório, a contratar pessoas locais e a investir. É o maior mercado da região, com 40 milhões de habitantes e uma visão muito ambiciosa. Tenho sido bem recebida e admiro o esforço que estão a fazer para diversificar a economia.
Enquanto gestora, como usa a IA no seu dia-a-dia?
Uso vários LLM [grandes modelos de linguagem]. São o meu novo motor de busca. Mas continuo crítica e académica: verifico sempre as fontes. A Defined.ai utiliza IA em larga escala — temos modelos próprios de voz, linguagem natural, anonimização de conteúdo e outros. É uma ferramenta essencial, até para preparar apresentações.
Que conselhos daria a um gestor português na utilização de IA?
O tecido empresarial português é composto quase só por microempresas. Um gestor com menos de dez pessoas pode usar a IA para gerar conteúdos, gerir redes sociais ou automatizar o atendimento. Empresas um pouco maiores já podem criar aplicações ou optimizar processos.
Há exemplos inspiradores: pequenas empresas que desenvolveram as suas próprias apps com IA. Antes, fazer um site era caro e complexo; agora, qualquer pessoa pode criar um website, produzir conteúdos e fazer marketing com poucos recursos.
O Sam Altman, da OpenAI, diz que os primeiros bilionários de empresas com menos de dez pessoas estão a nascer agora. Na realidade, ainda não vi isso acontecer, mas acredito que seja possível.