O documentário “Meu Ayrton, por Adriane Galisteu” estreou na HBO Max em 6 de novembro. Dividido em dois episódios, a série narra o relacionamento da modelo e apresentadora com Senna, o mito da Fórmula 1. Contado de forma pessoal, o documentário relata os últimos dias dele sob a perspectiva dela.
O documentário de Galisteu é, de certa forma, uma resposta tardia às recentes homenagens pelos 30 anos da morte do piloto. Em 2024 duas séries foram lançadas. Em “Senna por Ayrton”, documentário produzido pelo Globoplay, havia a pretensão de se contar a carreira do piloto a partir de seu próprio ponto de vista. Adriane foi limada. Em “Senna”, série lançada pela Netflix, ela até aparece, mas como um personagem completamente irrelevante.
De fato, a relação de Galisteu e Senna durou pouco. De março de 1993, quando se conheceram na corrida de Interlagos, até a morte do piloto em 1 de maio de 1994, o relacionamento durou menos de um ano e meio. Mas a forma como Adriane foi limada da narrativa acerca dos últimos dias da vida de Ayrton abre flanco para que muitos percebam o apagamento.
Nas narrativas sobre a vida do piloto, os últimos tempos são sempre apresentados como anos agoniados e cheios de tensão. A última vez que Senna fora campeão foi em 1991. Em 1994, havia pressão de todos os lados. Galisteu viveu tudo isso de perto. E da morte de Senna em diante, seu papel foi expurgado de vez.
No velório do piloto, Galisteu foi escanteada pela família de forma bizarra. De lá pra cá, quase todas as obras acerca de Senna são autorizadas pelos familiares, capitaneados pela irmã Viviane Senna.
Há duas honrosas exceções que escaparam ao controle familiar. A melhor biografia de Senna é “Ayrton, o herói revelado”, de Ernesto Rodrigues, publicada em 2004. Detalhista e bem escrito, é um livro que não contou com as bênçãos e nem sequer conseguiu entrevistar familiares do piloto, que negaram-se a colaborar. Isso permitiu ao autor uma salutar distância frente ao mito, construindo uma narrativa em que o Senna da vida privada não é idealizado.
Outra obra que buscou disputar a imagem santificada do piloto é o livro “Caminho das borboletas: meus 405 dias ao lado de Ayrton Senna”, publicado por Galisteu, em novembro de 1994. Para quem leu este livro, não há grandes revelações em “Meu Ayrton, por Adriane Galisteu”.
Mesmo sem grandes novidades, o mais importante do documentário de Adriane Galisteu é a sua disposição em disputar o mito nacional. É uma obra que talvez sequer seria lançada há 10 anos.
Fora este colunista, ninguém na imprensa parece ter celebrado os dez anos de uma decisão histórica do STF em 2015. Desde o início do milênio, vários biógrafos vinham sendo tolhidos de escrever, filmar e documentar vidas públicas, pois as famílias ou os próprios biografados embargavam obras.
Ficou célebre o caso do autor Paulo César de Araújo, que teve seu livro “Roberto Carlos em detalhes” proibido em todo território nacional a pedido do rei em 2007. Araújo ainda enfrentou demandas de indenização e prisão. Tudo isso sem que houvesse sequer uma mentira em seu livro. Simplesmente porque Roberto Carlos não gostou de sua narrativa.
Outros autores tiveram problemas com as famílias dos biografados, como foi o caso de Ruy Castro e as filhas de Garrincha, seu biografado em “Estrela solitária”. Foi também o caso do autor Benjamin Moser, que enfrentou familiares irados de Clarice Lispector.
Os biografados e seus familiares entendiam que a vida de pessoas públicas só deveria ser contada por eles mesmos, ou com suas autorizações. Espantou muito na época que grandes artistas da MPB, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan e vários outros unidos no grupo autointitulado “Procure Saber” tenham aderido à ideia de censura defendida por Roberto.
A repercussão foi enorme e, apesar de quase ninguém se lembrar hoje, o mercado de biografias impresso, visual e em áudio, estava estrangulado pelo medo. Muitas produções sequer saíam do papel.
Diante da pressão da sociedade, em 2015 o STF se pronunciou sobre o assunto. E garantiu o direito de expressão dos autores, sem censura prévia.
Foi uma vitória histórica. Sem ela não haveria grande parte das produções de sucesso de hoje em dia. Sem a garantia da lei de 2015, a Rádio Novelo não teria condições de produzir seus ótimos podcasts biográficos “Retrato Narrado”, sobre Bolsonaro, nem “Praia dos Ossos”, sobre o feminicídio de Ângela Diniz.
Tampouco existiria a série “Ângela Diniz: assassinada e condenada”, que estreou esta semana no HBO Max. Ou o grande sucesso do streaming no último mês, a série “Tremembé”, que conta a vida dos presidiários famosos do mundo criminal brasileiro. Qualquer biografado poderia embargar as séries. Até os próprios assassinos poderiam fazê-lo, em nome da ideia de que só eles poderiam falar de si, penalizando essas obras de arte mesmo que corretas.
Adriane Galisteu construiu uma carreira de brilho próprio, para além de sua curta trajetória com Senna. E tem a coragem de disputar a versão mitificada do piloto, sempre com elegância e sem demonstrar mágoa. Um Senna mais humano aparece em seu relato.
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