Quase crónica, quase tudo acção, quase guião: assim é Os Periquitos Somos Nós, o novo romance de Alex Couto, que talvez seja o escritor mais pop da contemporaneidade em Portugal. Depois de Sinais de Fumo, que saltou à vista pela linguagem desempoeirada, de rua, sem armar ao literário ou erudito, o novo romance parte de uma premissa engraçada: um reality show que promete oferecer um ateliê ao próximo grande artista de Lisboa. Perdoe-se a ausência de itálico em reality show – é assim que, ao longo do romance, cheio de expressões em inglês, tudo aparece: em redondo, como parte da linguagem natural, como se não tivesse clivagem. Ou seja, por toda a narrativa, a linguagem literária é horizontal, e não se marca a estranheza, o estrangeirismo. Ao assumir tudo em redondo, o autor assume que não há desvio. Com isto, marca na prosa a própria vida: a incorporação contemporânea na língua inglesa na oralidade dos falantes portugueses.
Nota-se em Alex Couto uma vontade de usar o território do romance para cristalizar a vida contemporânea. Aliás, a sua coetaneidade vai desde a linguagem às referências, cujo nível de erudição varia muito. Por exemplo: “Parece que os periquitos de colar já foram reportados num trabalho do Álvaro Filho, não foi? Aquela peça da Mensagem de Lisboa tinha-nos contado tudo sobre o que precisávamos de saber acerca dos verdadeiros invasores, de Lisboa, os periquitos mais exóticos…” (p. 41). Os próprios diálogos, como aqueles sobre redes sociais, levam à narrativa realidades contemporâneas que aparentemente circulariam fora do eixo do romance, mas que ajudam a compô-lo. Leia-se:
– Olha lá, Tomás… não estás a notar inúmeros comentários de contas falsas nas páginas do programa?
– Estou. Nas contas oficiais do programa e nas nossas também, nomeadamente na minha e na tua.
– Pois é. Acho um fenómeno estranho.
– Estranho e horrível, conseguem estragar todos os posts. Custa-me a crer que saí do Twitter porque o fascismo não parava de fazer dessa rede social o seu habitat natural e ainda tenho de levar com narrativas racistas em pleno Instagram.” (p. 81)
A ficção é criada, mas há sempre um fio – uma corda – que a ata à realidade. Através de um reality show, Alex Couto tenta mostrar a vida, sem abdicar de uma ironia que a põe a nu para os leitores: desde um concorrente “sacado à última hora por parte da produção” a outro “do gangue da faculdade de Belas-Artes” ou a outra “ucraniana que não foi escolhida só para nos demonstrarmos muito preocupados com a situação na Ucrânia após a invasão russa ou, se forem russófilos, invasão militar especial” (p. 18). Há ainda “um nepo baby” e “uma beleza” (“contratação dos operadores de câmara, decerto”, p. 19), numa panóplia de personagens que parece ter o intuito de apanhar alguns dos arquétipos da contemporaneidade urbana, sem os reduzir ao símbolo.
Título: “Os Periquitos Somos Nós”
Autor: Alex Couto
Editora: Suma de Letras
Páginas: 256
Num cenário em que quase tudo é diálogo, o leitor vê a interacção entre as partes, e a ironia com ares de crítica nunca deixa de estar latente (“eram migrantes do Sudeste asiático porque alguém tem de fazer o trabalho que os tugas não papam (e receber as culpas do pouco progresso nacional, também)”, p. 27). As referências aparecem com subtileza, nunca sendo descritas com minúcia, antes como pequenos apontamentos que obrigam a prosa a fervilhar – e são tantas e tão exageradas que chega a ser exuberante. Parece que, enquanto escreve, Alex Couto goza com a vida. Não é que haja grande beleza ou profundidade, mas até isso soa a intencional, uma vez que é isso que apanha o dia-a-dia: um conjunto de acções mal amarfanhadas e superficiais, passerelles de ego, a ironia como forma de sublinhar as incongruências, as expectativas confessadas e por confessar, o passar do tempo em ziguezague. Nisso, as personagens são pessoas, e a acção sabe a vida, e não a arquitectura construída só para fazer um romance, com os olhos no épico.
É também nisto que o autor não cede a vaidades semânticas, antes pondo no discurso directo a oralidade tal como existe, não como pode ser maquilhada para um texto. Em Sinais de Fumo, isto viu-se de forma clara, com tal uso de calão que dificultava, e ainda bem, o entendimento do leitor – posto isto, o leitor que se esforçasse, ou intuísse pelo contexto. A linguagem era viva e real, e portanto as personagens tinham carne. Aqui, vemos o mesmo, com as conversas a versar sobre material mediático, e uma oralidade tal que o livro parece mais coisa de ouvido do que de papel, ao mesmo tempo que parece um arquivo da fala urbana, sem ceder ao clichê do verniz cosmopolita. Em vez de se perder em erudições escusadas, o autor, usando um modelo televisivo, ecoa o próprio mundo enquanto reality show, e isto sem se perder um cunho algo entre a sátira e o retrato sociológico num contexto em que a arte é transformada em entretenimento e em que capital cultural e capital financeiro se misturam.
Tudo pesado, saltam ainda à vista os laivos de humor e, sobretudo, uma tendência clara de não empolar nas frases só para as fazer mais literárias. A prosa, não sendo particularmente complexa ou bela, é simples e veicula os sentidos, além de dar ao leitor a sensação de estar a ver uma série. Com isto, e estando a contemporaneidade tão vincada em movimentos rápidos entre as personagens, o romance parece feito mais para registar do que para durar – e é bom ler o que não inventa pretensões.
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico