Se alguma vez regressar à comédia feita em cima dos palcos, algo que não acontece há quase 40 anos, Eddie Murphy, que foi das maiores estrelas de stand-up dos anos 1980, diz que pegará em bonecos de Bill Cosby e Richard Pryor. Pô-los-á a falar, como ventríloquo, um com o outro, com Murphy no meio. O actor, homem das mil vozes e dono de um dos risos e sorrisos mais célebres da cultura pop, torna isso realidade no final de Eu, Eddie, o documentário Netflix por ele encabeçado. Tem mesmo dois bonecos dos dois grandes astros cómicos negros que antecederam a entrada de um ainda adolescente Murphy no panorama americano, no início dos anos 1980.

Murphy sempre foi muito mais Pryor do que Cosby, que apregoava uma comédia limpinha, sem palavrões, e hoje está caído em desgraça e chegou a estar preso por dezenas de acusações de violação, violência sexual, assédio e abuso de crianças. E isso está patente nesse segmento do filme e é das coisas que têm mais piada no documentário. Eu, Eddie é daqueles formatos típicos do streaming em que uma pessoa famosa já com alguma idade se explica a si própria e à sua longa carreira, com um tom confessional controlado e outras figuras conhecidas como cabeças falantes.


Eu, Eddie ​é realizado por Angus Wall, oscarizado montador de filmes de David Fincher como A Rede Social ou Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres. O documentário da Netflix põe Murphy, que foi um dos grandes cómicos de stand-up dos anos 1980, passou por Saturday Night Live e quebrou barreiras no cinema como actor negro, a falar enquanto deambula pela sua enorme mansão em Los Angeles.

Murphy é alguém que tem trabalhado com a Netflix em produções como Chamem-me Dolemite – um dos títulos mais interessantes que fez em tempos recentes – ou o quarto capítulo da saga O Caça-Polícias. Ou seja, se já seria expectável omitirem-se as partes mais polémicas da sua carreira, que é o que acontece neste tipo de empreitadas, aqui isso é ainda mais necessário. No documentário, o actor diz que o seu legado é a sua família, os seus dez filhos. Mas não há menção ao mediático caso de não querer reconhecer a paternidade do filho que partilha com Mel B, das Spice Girls, ou do episódio em que, nos anos 1990, foi apanhado com uma prostituta no carro. Não se finge que a carreira de Murphy é sempre maravilhosa, mas também pode ficar a parecer que os únicos pontos baixos da filmografia são Vampiro em Brooklyn e Pequeno Grande Dave, quando haveria muito mais por onde pegar.

Aqui, ele explica-se a ele próprio, a como cresceu com transtorno obsessivo-compulsivo, como sabia aos dez anos que queria ser como o herói Pryor e tão fixe quanto Elvis Presley. Ia ser famoso, dizia aos 18 anos. Falhou por um ano. Era frequentemente comparado a Pryor, com quem trabalhou em Os Reis da Noite, algo que parece injusto, como se só pudesse existir um cómico negro famoso de cada vez.

No filme, vemos a vida caseira de Murphy, que adora, explica, estar em casa, e gira muito à volta de ver YouTube – mostra, por exemplo, Jimi Hendrix aos filhos – ou o programa da MTV Ridiculousness, de vídeos virais da internet, algo que o actor compara ao trabalho do realizador mexicano Alejandro Jodorowsky. Além das imagens de arquivo, ouvimos pares e gente por ele influenciada, como Jerry Seinfeld, Dave Chappelle, Pete Davidson, Tracy Morgan, Kevin Hart, Chris Rock, Arsenio Hall, Kenan Thompson ou Adam Sandler, além dos realizadores John Landis e Reginald Hudlin, a actriz Tracee Ellis Ross ou a figurinista oscarizada Ruth E. Carter, entre muitos outros.

Dá-se muito espaço, por exemplo, à ideia de Murphy ter “aberto portas”, chamando-se a Príncipe das Mulheres, que Hudlin assinou em 1992, a primeira comédia romântica negra – como se filmes como Claudine – Corpo e Alma, feito por John Berry 18 anos antes, não existissem. Também se fala muito do facto de Murphy ter sido gozado por Saturday Night Live por causa do falhanço de Vampiro em Brooklyn, algo que o fez ficar ofendido com o programa que o tornou famoso – e que ele ajudou a salvar – e ao qual só voltou em 2019 para apresentar, um momento mostrado como um dos picos da carreira. Eu, Eddie não é nada de novo ou imperdível, mas é Eddie Murphy em boa forma.