Há 20 anos, na última corrida presidencial que protagonizou, Mário Soares tentava assegurar que a sua “independência” deitaria por terra a ideia de que os portugueses não gostam de votar na mesma área política para diferentes cargos: “Não haverá maneira de os ovos ficarem todos no mesmo cesto porque o ovo presidencial, que serei eu, será independente”. Meses depois comprovar-se-ia que dessa vez não tinha razão: com José Sócrates a liderar o Governo, os portugueses escolheriam Cavaco Silva para se instalar em Belém. Vinte anos volvidos, Luís Marques Mendes volta a enfrentar o mesmo dilema — a teoria de que os portugueses preferem não colocar os ovos todos no mesmo cesto — numa altura em que o PSD tem na sua mão, simultaneamente, o domínio do Governo, das autarquias e das regiões autónomas.
O homem com quem tem alimentado maior rivalidade nesta pré-campanha, Henrique Gouveia e Melo, aproveita a associação de Luís Marques Mendes ao PSD — antes do 25 de Abril já era simpatizante, fez de tudo no partido e chegou a líder, embora não a primeiro-ministro — precisamente para frisar a independência que, na sua perspetiva, Marques Mendes não tem: esta semana chamava-lhe “cavalo de Tróia”, dizendo que “sem o PSD não seria eleito” e que ficará mesmo com uma “dívida” ao partido que lhe será cobrada em Belém.
Coincidência ou não, nos últimos dias Marques Mendes tem feito críticas e avisos ao Governo, algumas particularmente duras e em áreas em que Luís Montenegro se depara com sérias complicações, da Saúde à greve geral que CTGP e UGT preparam para dezembro. E na sua equipa não falta quem recorde farpas antigas e mais recentes ao partido, zangas de há anos com autarcas do PSD que não apoiou por razões éticas ou comentários ácidos que chegou a lançar, em domingos de muita audiência, contra líderes sociais democratas.
Entre quem trabalha com Marques Mendes atira-se a farpa a Gouveia e Melo: o social democrata tem dito o que pensa, criticando por vezes o Governo, sem modificar o discurso “consoante o eleitorado atrás do qual quer ir, como o almirante“; mantém-se no centro-direita, assumindo o seu passado político e o “orgulho” que tem na sua família política, juntando-lhe as tais “críticas de bom senso” com que outros eleitores também se podem identificar. “Se há coisa que ele não é é um catavento: não diz de manhã que é de esquerda e à noite que é de direita”.
Tudo para tentar garantir uma coisa: Marques Mendes é, como “Cavaco Silva, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa ou Mário Soares” antes dele, um candidato vindo de um partido, mas isento e independente; as críticas que faz ao PSD podem afetar a sua base mais natural de apoio, mas isso são custos que está disposto a pagar; e essas críticas também o ajudam a alargar o eleitorado a que pode chegar, e que registará o seu “bom senso”. O partido de sempre vai registando as farpas sem as levar a peito: é tempo de Marques Mendes lutar para chegar à Presidência e isso não produz “mal estar” num PSD que já se tinha habituado a um Marcelo Rebelo de Sousa que nem sempre deixou a própria família política satisfeita.
Luís Montenegro tinha, aliás, notado isso mesmo em maio, quando oficializou o mal guardado segredo do apoio do PSD a Marques Mendes: “Temos alguém do nosso espaço político que é um anterior presidente do PSD, uma pessoa altamente qualificada que nós conhecemos muito bem e que o país também conhece bem e que apresenta características que são muito consentâneas e adequadas ao exercício da função do Presidente da República”, disse, ironizando depois: “Até tem uma característica que não é propriamente a mais agradável para o PSD” — “É que nem sempre concorda com o PSD, mas isso é uma das características dos Presidentes da República que nós já elegemos”.
A ideia foi sempre, por isso, frisar a independência e a neutralidade de Marques Mendes, que a campanha espera que doze anos de comentário político possam ter ajudado a solidificar. Na rua, repete o candidato em várias entrevistas, dizem-lhe que é “isento” e que critica a própria família política. E é isso que quer provar, num momento em que a maior crítica dos adversários passa por essa associação ao PSD, ainda para mais atual partido do poder (André Ventura já o acusou de ter feito uma “troca de favores” com o PSD, tornando-se o “maior aliado” de Luís Montenegro no comentário televisivo, e conseguindo depois o seu apoio nas presidenciais).