Enquanto um amigo entusiasmado descrevia os carros que teve, tem e pretende ter —cores, perfis, velocidade— Cecília Meireles ouvia calada. Ela tinha outro tipo de relação com automóveis.
“Há tempos, tive a ocasião de celebrar o décimo aniversário do nosso carro, já me presto a celebrar o 11º e acho-o sempre lindo por fora e por dentro”, escreveu a poeta em crônica publicada na Folha, nos anos 1964.
O carro era preto, sem ornamentos, sem bandeirolas ou propagandas políticas. “Este é um carro bem comportado, não violento, apolítico, digno da divisa ‘talent de bien faire’, que se poderia, no caso, traduzir como ‘minha função é bem servir'”.
Um carro em São Paulo prestes a completar 30 anos, que só havia trocado os pneus. Contra a cultura do descarte, da novidade constante, Cecília defendia o duradouro.
“O superficial, o provisório, o supérfluo, o aparente não me apaixonam”, concluiu. “Eu sou pelo essencial”. Cecília era feliz no simples.
Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.
A respeito de automóveis (18/6/1964)
Um amigo entusiasmado fala-me de um carro que já teve, do que tem atualmente e do que pretende ter: descreve-me perfis, cores, forração, enfeites; depois, passa ao capítulo da velocidade e é como se descrevesse não um automóvel, mas uma seta ou um pássaro. Acompanho a descrição, maravilhada com a sua alegria: quem vai chamar à realidade um amigo que está sonhando seu sonho belo e inofensivo?
Um dia talvez ele desperte sozinho e então verá que perfis, cores, forração, enfeites são graciosas ilusões e, quanto à velocidade, que adianta, nas cidades congestionadas, onde se tem de avançar metro a metro, pelas ruas; o que adianta, nas estradas, onde sempre o bendito guarda rodoviário apita, quando se aproxima um carro a mais de 80 quilômetros por hora?
Acompanho a descrição, maravilhada; mas é assim como se meu amigo me dissesse que, cinco anos atrás, estava casado com uma linda moça loura, agora trocou-a (sem motivos especiais) por uma ruiva que lhe parece mais atraente, mas principia a interessar-se por uma jovem morena cujas especificações exteriores se pusesse a enumerar. Tudo isso me parece superficial, vago, inconsequente: automóveis e moças reduzidos a simples aparência e a alguma provisória qualidade, observada de um ponto de vista ao mesmo tempo ingênuo e utilitário. Deixo-o falar.
Deixo-o falar, mas não me deixo seduzir. Há tempos, tive a ocasião de celebrar o décimo aniversário do nosso carro, já me presto a celebrar o 11º e acho-o sempre lindo por fora e por dentro: limpo, lustroso, pronto a partir, pronto a parar, silencioso, macio, muito obediente e em tudo discreto: não é cor de laranja nem de fúcsia nem azul-petróleo nem escarlates, é apenas preto. Não tem todos esses ornamentos que exibem certos carros: broches oblíquos, autógrafos, condecorações, nada disso. E jamais suas vidraças admitiram bandeirolas, flâmulas, figurinhas turísticas e muito menos propagandas políticas com fotografias de candidatos e respectivos lemas. Este é um carro bem comportado, não-violento, apolítico, digno da divisa “talent de bien faire”, que se poderia, no caso, traduzir como “minha função é bem servir”.
Ao divagar sobre esse automóvel — que não vendemos nem damos nem emprestamos — até me pergunto se as criaturas humanas não deveriam, em muitos casos, copiar-lhes as virtudes e seguir-lhe o exemplo. Mas baralham-se-me as ideias: estou, no elogio de um automóvel, tomando por modelo a dignidade humana, ou propondo aos homens aceitarem para a sua vida o modelo deste automóvel? Os caminhos do pensamento têm muitas esquinas obscuras…
Ora, inicialmente, eu pretendia tratar apenas da amizade que pode ligar os homens aos objetos, como frequentemente os liga a pessoa e animais.
E ao referir-me a este automóvel que, em plena maturidade, encontra por toda parte quem se enamore de suas qualidade e logo apresente propostas de compra (quase digo casamento), lembro-me de outro carro, existente em São Paulo, que em breve completará 30 anos e cujo proprietário ao ler a minha crônica sobre esse automóvel que me pertence em parte (ou a que pertenço), fez-me a descrição amorosa do seu, que, nessa vida relativamente longa, só mudou os pneus e continua a dar-lhe constante alegria, com a precisão honesta do seu serviço.
Ocorre-me que as relações entre empregados e patrões deviam ser assim: de um lado, o cumprimento exato dos deveres profissionais; do outro, a estima, a compreensão, a valorização, o respeito dessas qualidades funcionais.
Mas principio a notar que nesta crônica se vão insinuando sugestões, conselhos, opiniões sobre o bom convívio na Terra. Isto é, contra a minha vontade, pois dar um conselho é quase sempre perder um amigo. Fica o dito pelo não dito, apenas a declaração de que o superficial, o provisório, o supérfluo, o aparente não me apaixonam. Eu sou pelo essencial.