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Alguns vinhos mudaram o mapa. Outros mudaram a forma como o vemos
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Ao se perguntar quais vinhos mudaram o mundo, a maioria das pessoas mencionaria os de sempre: os grandes rótulos de Bordeaux, os Cabernets cult da Califórnia, os vinhos com pontuação máxima, os Super Toscanos… Mas nem todo vinho que causou impacto global tem preço de quatro dígitos ou lista de espera comparável à de um show. Alguns chegaram de forma discreta — criados por pessoas determinadas, mais interessadas em provar um ponto do que em impressionar colecionadores.
Esta é uma lista desses transformadores discretos: vinhos que, ao serem lançados, não ocuparam manchetes, mas hoje são responsáveis por mudanças de rumo. Eles pertencem ao lado dos grandes nomes — talvez até à frente de alguns —, pois o modo como o mundo consome vinho hoje não seria o mesmo sem eles.
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Cada um desses vinhos foi um ato de fé: um vinhedo plantado de forma diferente, uma uva tratada com atenção, uma região que passou a acreditar em si mesma. Alguns foram experimentos; outros, acasos. Todos ampliaram e diversificaram o mundo do vinho. E o mais relevante é que suas histórias continuam ativas, influenciando práticas agrícolas, estilos e mentalidades em todo o mundo.
Duca di Salaparuta “Duca Enrico” (Sicília, 1984)

Duca di Salaparuta
Duca Enrico descobriu o potencial da Nero d’Avola, colocando a Sicília no mapa mundial do vinho
O momento: Na década de 1980, a Sicília ainda era associada a vinhos de grande volume — intensos e baratos. Então surgiu o Duca Enrico, o primeiro vinho da ilha feito 100% com Nero d’Avola. Sem mistura e sem concessões. Para surpresa de muitos, recebeu reconhecimento crítico significativo.
A mudança: Ao tratar a uva nativa da Sicília com o mesmo respeito dado ao Cabernet, a Duca di Salaparuta redefiniu o que o vinho do sul da Itália poderia representar. Na época, foi uma virada importante e uma prova de que qualidade podia prosperar em calor e luz, não apenas em neblina e calcário.
O legado: Hoje, o Nero d’Avola é o cartão de visita da Sicília — e tudo começou aqui. Segundo o enólogo Salvatore Tomasello, “na década de 1980, havia pouco mais de cinco vinícolas engarrafando vinho na Sicília. Este é considerado o rótulo que marcou o avanço vitivinícola e econômico da ilha”.
Atualmente, produtores em toda a região experimentam versões de Nero d’Avola cultivadas em altitude, envelhecidas em ânforas e orgânicas, explorando seu potencial. “É comum ouvir de vinícolas sicilianas que seus avanços agronômicos, comerciais e de reconhecimento internacional têm origem na história deste rótulo”, acrescenta Tomasello. “É uma responsabilidade que a empresa deve manter com dedicação.”
Braida “Bricco dell’Uccellone” (Piemonte, 1982)

Braida
40 safras de Bricco dell’Ucellone, o vinho que redefiniu a Barbera
O momento: Tradicionalmente, a Barbera era considerada uma uva de uso cotidiano — de alta acidez e rendimento, destinada a vinhos simples para o dia a dia. Giacomo Bologna, da Braida, via diferente.
A mudança: Envelhecer Barbera em carvalho francês novo era algo incomum. O resultado — estruturado, equilibrado e com potencial de guarda — mostrou que a “outra” uva do Piemonte podia ocupar o centro do palco.
O legado: O Bricco dell’Uccellone mostrou aos produtores italianos que suas próprias variedades mereciam destaque. Hoje, a Barbera continua evoluindo, de pequenos produtores naturais a nomes consolidados como Vietti e Coppo, mantendo viva a influência do experimento de Bologna.
Marcel Lapierre Morgon (Beaujolais, 1981)

Domaine Lapierre
Marcel Lapierre abriu as portas para a produção de vinhos naturais em todo o mundo
O momento: Em uma época em que o mercado buscava potência e extração, Marcel Lapierre buscava pureza. Seu Morgon não era filtrado nem ajustado.
A mudança: Sem planejar, ele gerou uma mudança de mentalidade. Sua abordagem de mínima intervenção inspirou produtores interessados em vinhos com vitalidade natural.
O legado: O Morgon de Lapierre tornou-se a origem do movimento dos vinhos naturais. Sua influência se estende de Beaujolais à Califórnia e à Austrália, onde a vinificação de baixa intervenção se tornou um estilo reconhecido.
Tyrrell’s Vat 1 Sémillon (Hunter Valley, 1963)

Trryell’s
O Tyrrell’s Vat 1 Sémillon foi um divisor de águas para os vinhos brancos de guarda do Vale Hunter
O momento: O Sémillon do Hunter Valley era considerado simples e sem complexidade. Com o tempo, revelou outra dimensão.
A mudança: Envelhecido, o Vat 1 passou de leve e cítrico a concentrado e meloso, mostrando que paciência podia transformar vinhos brancos modestos em exemplares notáveis.
O legado: Hoje, o Sémillon envelhecido do Hunter é uma marca australiana. Vinícolas experimentam contato com as borras e leve uso de carvalho para torná-lo mais acessível sem perder a longevidade que tornou o Vat 1 um modelo.
Cloudy Bay Sauvignon Blanc (Marlborough, 1985)

Cloudy Bay
Cloudy Bay é amplamente considerado o Sauvignon Blanc de referência de Marlborough
O momento: Antes do Cloudy Bay, poucos conheciam Marlborough. Depois dele, tornou-se impossível esquecer. “É impressionante ver como, independentemente da influência de alguém na indústria, todos têm sua própria história com o Cloudy Bay”, relata o enólogo Nikolai St. George.
A mudança: Seus aromas intensos — de erva, groselha, toranja e limão — criaram uma nova referência sensorial. “O Cloudy Bay sempre teve uma confiança discreta e decisões baseadas em experiência global, não em tendências locais”, afirma St. George.
O legado: O vinho consolidou não apenas uma marca, mas toda uma indústria nacional. Muitos produtores seguem o estilo clássico de Sauvignon Blanc vibrante e definido pela fruta. “Plantar em Marlborough parecia um risco, mas foi uma decisão estratégica fundamentada em conhecimento”, acrescenta St. George. O estilo segue evoluindo, inspirando versões com mais textura, vinhedos únicos e fermentação em barrica em toda a Nova Zelândia.
Didier Dagueneau “Silex” (Vale do Loire, 1985)

Devin Parr
Didier Dagueneau deu aos produtores de vinho branco permissão para serem assumidamente limpos
O momento: Didier Dagueneau acreditava que o Sauvignon Blanc podia ter profundidade comparável à dos vinhos da Borgonha. Muitos duvidaram.
A mudança: Sua atenção à precisão, textura e expressão do terroir tornou o Silex um marco. Mostrou que o Sauvignon poderia priorizar nuances em vez de intensidade.
O legado: Após sua morte, sua influência permanece. Segundo Camille Roblin, do Centre-Loire, “o progresso na região está ligado a uma compreensão mais profunda dos terroirs e do ambiente, buscando maior precisão e autenticidade”. Essa busca continua a orientar uma nova geração de produtores do Loire, de Sancerre a Menetou-Salon.
Estate Argyros Assyrtiko (Santorini, 1980s)

Estate Argyros Facebook
O Assyrtiko da Argyros é um estudo sobre a eletricidade do vinho branco
O momento: O vinho grego era pouco valorizado, com tradição antiga e reputação limitada. Da ilha vulcânica de Santorini, o Estate Argyros apresentou uma nova energia.
A mudança: O Assyrtiko mostrou que tradição e inovação podiam coexistir. “Na década de 1980, a colheita passou a ocorrer em agosto, e a fermentação refrigerada foi introduzida. Isso mudou o perfil dos vinhos para um caráter mais fresco e mineral, com potencial de guarda”, explica Sofia Perpera, da Federação de Vinhos da Grécia.
O legado: O Assyrtiko de Santorini é hoje um dos grandes brancos do mundo. Produtores gregos exploram maceração com as cascas e envelhecimento em carvalho, continuidade natural do legado iniciado por Argyros.
Concha y Toro “Don Melchor” (Chile, 1987)

Viña Don Melchor
O Cabernet Sauvignon Don Melchor foi inovador para o vinho chileno
O momento: Por décadas, o Chile era mais conhecido pelo volume do que pela sofisticação. O Don Melchor alterou essa percepção com um único lançamento. Segundo Enrique Tirado, diretor da vinícola, o que tornou o vinho transformador foi “a combinação de visão, conhecimento e terroir excepcional”.
A mudança: Inspirado em Bordeaux, mas adaptado ao clima chileno, o Don Melchor elevou o Cabernet do país ao nível de colecionador. Em 1984, representantes da vinícola levaram amostras do vinhedo Puente Alto ao enólogo francês Émile Peynaud, o que deu origem ao projeto.
O legado: O Don Melchor consolidou o Chile como origem de vinhos colecionáveis e de guarda. A nova geração segue explorando Cabernets de terroirs específicos, do Alto Maipo ao Aconcágua, em continuidade a esse marco.
Catena Zapata “Alta” Malbec (Mendoza, 1994)

Bodega Catena Zapata
O Malbec argentino ganhou uma imagem completamente nova graças à Catena Zapata
O momento: O Malbec estava em declínio quando Nicolás Catena levou a uva a altitudes elevadas.
A mudança: O cultivo em regiões altas transformou o perfil do Malbec, de denso e rústico a refinado e durável. Foi um avanço científico e estilístico que redefiniu a imagem da Argentina.
O legado: A Catena Zapata não apenas resgatou uma variedade, mas criou um modelo para o vinho sul-americano moderno. Suas pesquisas orientam projetos em toda a Cordilheira dos Andes, moldando a identidade vitivinícola do país.
Bonny Doon Vineyard “Le Cigare Volant” (Costa Central, 1984)

Bonny Doon Vineyard Facebook
O Le Cigare Volant de Bonny Doon lançou o espírito rebelde duradouro do vinho californiano
O momento: Na década de 1980, quando o vinho californiano era dominado por Cabernet e Chardonnay, Randall Graham, da Bonny Doon, optou por outra direção. Misturou Grenache, Syrah, Mourvèdre e Cinsault — uvas do Rhône — e nomeou o vinho em referência a uma lei francesa que proibia pousos de OVNIs.
A mudança: Por trás do humor, havia propósito. O Le Cigare Volant mostrou que a Califórnia podia expressar seu próprio terroir. Graham combinou inspiração francesa e ousadia local, dando origem ao movimento Rhône Ranger e abrindo caminho para uma geração de produtores experimentais.
O legado: Décadas depois, o Le Cigare Volant permanece como símbolo de liberdade criativa na viticultura americana. Vinícolas como Tablas Creek e Stolpman Vineyards continuam essa abordagem, demonstrando que a imaginação segue impulsionando a produção californiana.
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