Parece um experimento mental criado por René Descartes para o século XXI.

Os cidadãos de uma cidade simulada dentro de um videogame baseado na franquia “Matrix” despertavam para uma realidade sombria. Tudo era falso, explicou um jogador pelo microfone; eles não passavam de linhas de código destinadas a embelezar um mundo virtual. Impulsionados por inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, os personagens reagiram com pânico e incredulidade.

“O que isso quer dizer? Sou real ou não?”, perguntou uma mulher de suéter cinza.

A versão demo inquietante, lançada há dois anos por uma empresa de tecnologia australiana chamada Replica Studios, mostrou tanto o poder potencial quanto as consequências de aprimorar a jogabilidade com inteligência artificial (IA). O risco vai muito além de cenas perturbadoras dentro de um mundo virtual. À medida que os estúdios de videogames se tornam mais confortáveis com a terceirização do trabalho de dubladores, roteiristas e outros profissionais para a IA, o que será do setor?

No ritmo em que a tecnologia está avançando, grandes empresas desse setor, como o Google, a Microsoft e a Amazon, estão contando com seus programas de IA para revolucionar nos próximos anos a forma como os jogos são feitos.

“Todo mundo está tentando correr em direção à inteligência artificial geral”, disse Kylan Gibbs, diretor-executivo da Inworld AI, fazendo referência ao ponto de inflexão em que os computadores terão as mesmas habilidades cognitivas dos humanos. “Existe a crença de que, quando isso se concretizar, basicamente vamos monopolizar todos os outros setores.”

Nos primeiros meses depois do lançamento do ChatGPT em 2022, a discussão do papel da IA nos jogos era principalmente sobre como esta poderia ajudar os estúdios a gerar rapidamente arte conceitual ou escrever diálogos básicos.

Suas aplicações se aceleraram depressa. Nesta primavera setentrional, na Conferência dos Desenvolvedores de Jogos, em San Francisco, milhares de profissionais ansiosos em busca de uma oportunidade de emprego foram recebidos com um assustador vislumbre do que o futuro dos videogames reserva.

Engenheiros do Google DeepMind, laboratório de IA, deram uma palestra sobre um novo programa que pode acabar substituindo testadores humanos por “agentes autônomos” com capacidade para executar as primeiras versões de um jogo e descobrir possíveis falhas.

Os desenvolvedores da Microsoft fizeram uma demonstração de jogabilidade adaptativa com um exemplo de como a IA pode estudar um vídeo curto e gerar imediatamente o design de outros níveis e criar animações que, de outra forma, levariam centenas de horas para serem produzidos.

E os executivos por trás da Roblox, plataforma de jogos on-line, apresentaram o Cube 3D, modelo de IA generativa que pode produzir, em questão de segundos, objetos e ambientes funcionais a partir de descrições de texto.

Essas não eram as soluções pelas quais os desenvolvedores esperavam em seguida a vários anos de demissões em massa. Houve mais uma rodada de cortes na divisão de jogos da Microsoft neste mês. Foi um sinal de alerta para alguns analistas de que a empresa estava transferindo recursos para a IA.

Os estúdios estão sofrendo com a expectativa de que surjam soluções gráficas hiper-realistas que transformem até mesmo seus jogos mais vendidos em prejuízos financeiros. E alguns observadores ainda temem que investir em programas de IA na esperança de reduzir custos indiretos possa, na verdade, ser uma distração dispendiosa para diminuir os problemas de eficiência do setor.

A maioria dos especialistas reconhece que a IA vai dominar a indústria de videogames nos próximos cinco anos, e os executivos já começaram a se preparar para reestruturar sua empresa antecipadamente. Afinal, esse foi um dos primeiros setores a implantar a programação de IA na década de 1980, com os quatro fantasminhas que perseguem o Pac-Man, cada qual respondendo de maneira diferente aos movimentos do jogador em tempo real.

No último ano, a IA generativa passou de um conceito para uma ferramenta bastante usada na indústria de games, de acordo com uma pesquisa divulgada pelos organizadores da Conferência dos Desenvolvedores de Jogos. A maioria dos entrevistados disse que sua companhia estava usando IA. Ao mesmo tempo, um número crescente deles manifestou a preocupação de que isso venha a contribuir para a instabilidade no emprego e aumente as demissões.

Nem todas as respostas foram negativas. Alguns desenvolvedores elogiaram a capacidade de usar programas de IA para executar tarefas repetitivas, como colocar objetos em uma vila virtual.

Apesar das demonstrações tecnológicas impressionantes, mostradas na conferência no fim de março, muitos desenvolvedores admitiram que seus programas ainda estavam a vários anos de distância do uso generalizado.

“Existe uma diferença muito grande entre protótipos e produtos”, afirmou Gibbs, que dirige a Inworld AI, empresa de tecnologia que desenvolve programas de IA para aplicações de consumo em setores como jogos, saúde e aprendizagem. Ele participou de um painel da conferência da Microsoft, no qual sua empresa apresentou um modelo de jogabilidade adaptativa.

Segundo Gibbs, os grandes estúdios podem enfrentar custos na casa dos milhões de dólares para atualizar sua tecnologia. O Google, a Microsoft e a Amazon esperam se tornar a nova espinha dorsal do setor de games ao oferecer ferramentas de IA que exigiriam que os estúdios migrassem para seus servidores sob contratos caros.

A tecnologia de IA se desenvolveu tão depressa que ultrapassou a Replica Studios, a equipe por trás da versão demo tecnológica baseada na franquia “Matrix”. A Replica fechou as portas este ano devido ao ritmo da concorrência de empresas maiores, como a OpenAI.

O diretor de tecnologia da Replica, Eoin McCarthy, contou que, no auge da popularidade da demo, os usuários geravam mais de cem mil linhas de diálogo para personagens não jogáveis, chamados NPCs, cuja manutenção custava cerca de US$ 1.000 por dia à startup.

Esse custo diminuiu nos últimos anos com o avanço dos programas de IA, mas, de acordo com ele, muitos desenvolvedores ainda não estão acostumados a lidar com despesas tão elevadas. Havia também preocupações com os custos adicionais caso os NPCs passassem a interagir entre si.

McCarthy disse que, quando a Replica anunciou que encerraria a versão demo, alguns jogadores ficaram temerosos do destino dos NPCs. “Eles continuariam a viver ou morreriam?”, perguntavam. “É uma demo de tecnologia. Essas pessoas não são reais”, ele respondia.

Muitos dos programas atuais que poderiam automatizar o desenvolvimento de jogos ainda são proibitivamente caros para operar e repletos de falhas. Os desenvolvedores pedem paciência, porque, segundo afirmam, os modelos utilizáveis provavelmente levarão mais cinco anos para melhorar a qualidade e reduzir os custos.

Gibbs comentou que é provável que o modelo de jogabilidade adaptativa apresentado durante a conferência da Microsoft custe centenas ou milhares de dólares por hora para ser executado comercialmente. Um programa semelhante chamado Oasis tem problemas próprios, explicou ele. Como gera conteúdo quadro a quadro, ele esquece as informações visuais que não estão imediatamente presentes na tela, deixando os jogadores num ambiente em mudança constante.

Embora seja promissora, a tecnologia ainda é uma resposta em busca de um problema, observou Gibbs. “O que podemos fazer para que a comunidade de pesquisadores vá em uma direção mais útil? Achar uma maneira mais barata de fazer jogos a um custo cinco mil vezes maior para rodar um game? Será que isso é realmente fazer algo mais em conta?”, perguntou ele.

Além da questão financeira, especialistas em ética continuam concentrados em questões relativas ao grau de preparação da indústria para lidar com personagens sensíveis e às fases que se desenham sozinhas.

Cansu Canca, diretora da área de Práticas Responsáveis de IA na Universidade do Nordeste dos EUA, em Boston, afirmou que a normalização da tecnologia colocaria em risco a autonomia individual e a privacidade. “Minha maior preocupação não é que a IA ganhe consciência, mas o que significa para nós existir em um ambiente virtual no qual os encontros nem sempre podem ser controlados ou previstos.”