O 27° Congresso Brasileiro de Perinatologia 2025, realizado no Rio de Janeiro de 19 a 22 de novembro, trouxe o tema “hipotermia terapêutica” (HT) como destaque. Na conferência internacional “Da Evidência à Prática: Hipotermia Terapêutica na Encefalopatia Neonatal”, o palestrante Roger Soll (EUA) ressaltou a relevância do assunto e mostrou um pouco da sua experiência na University of Vermont. 

O tópico inicial da palestra foi referente aos mecanismos de lesão cerebral no recém-nascido (RN) a termo, sendo citada a revisão de Donna Ferriero publicada no New England Journal of Medicine em 2004. O estresse oxidativo e a excitotoxicidade desencadeiam vias intracelulares que resultam tanto em processos inflamatórios quanto em mecanismos de reparo tecidual. A morte celular tem início imediato após o insulto e persiste por vários dias ou até semanas. O padrão morfológico dessa morte evolui de um aspecto inicialmente necrótico para características semelhantes às da apoptose, configurando um processo contínuo conhecido como continuum necrose–apoptose. Na asfixia perinatal, a fase primária ocorre no momento da agressão hipóxico-isquêmica (ao nascimento) e a fase secundária se inicia entre 6–24 horas após o nascimento, caracterizada por cascata inflamatória, excitotoxicidade e morte celular. Por fim, a janela terapêutica nas primeiras 6 horas de vida, período crítico para iniciar o resfriamento. 

O Dr. Soll também citou o estudo Neuroprotection with prolonged head cooling started before postischemic
seizures in fetal sheep, de Gunn e colaboradores (1998), que mostrou que o impacto do resfriamento cerebral aplicado entre 6 e 72 horas após a isquemia foi analisado pela quantificação microscópica da perda neuronal em diversas regiões encefálicas cinco dias após o insulto. Observou-se uma redução global expressiva (P  

A HT em modelos animais de insulto hipóxico-isquêmico mostra que o resfriamento leve para 32 a 34 °C exerce efeito neuroprotetor, e os dados experimentais indicam que o início precoce do resfriamento é fundamental, com resultados significativamente melhores quando iniciado em menos de 2 horas e ainda eficaz, embora em menor magnitude, se aplicado até 6 horas após o insulto, devendo ser mantido entre 48 e 72 horas para mitigar cascatas secundárias de lesão, conforme evidenciado pelo palestrante ao destacar que intervenções dentro dessa janela estreita atenuam processos fisiopatológicos críticos mesmo que a reprodução dessa precocidade seja desafiadora na prática clínica. 

O que sabemos a partir de ensaios clínicos de HT em neonatos?  

Os ensaios clínicos são muito específicos com relação à população que deve ser estudada. 

Quem pode se beneficiar do resfriamento? 

Neonatos com evidência de asfixia periparto, com cada RN inscrito preenchendo pelo menos um dos seguintes critérios: 

  1. Apgar de 5 ou menos aos 10 minutos; 
  2. Necessidade de ventilação mecânica ou reanimação aos 10 minutos; 
  3. pH de cordão  
  4. Evidência de encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI) de acordo com a classificação de Sarnat. 

Nenhuma anomalia congênita importante que seja reconhecível ao nascimento. 

Segundo o palestrante, há trabalho clínico e fisiopatológico relevante a ser enfrentado nos dias subsequentes ao insulto hipóxico-isquêmico, e essa compreensão tem sido incorporada ao manejo moderno. Ele observa que existem definições bem estabelecidas para EHI moderada ou grave, que incluem alterações como hipotonia, reflexos anormais, distúrbios pupilares, reatividade reduzida e evidências de convulsões. Destaca também que muitos dos estudos analisados acrescentaram avaliações complementares, como a eletroencefalografia integrada de amplitude (aEEG) à beira do leito, para detectar crises ou outras anormalidades. No entanto, ressalta que esses ensaios utilizam critérios de inclusão extremamente rigorosos, difíceis de reproduzir na prática clínica cotidiana, mas constituem a base populacional sobre a qual o conhecimento atual se apoia e citou o estudo Selective head cooling with mild systemic hypothermia after neonatal encephalopathy: multicentre randomised trial de Gluckmann e colaboradores (2005). 

Métodos de HT 

  • Head cooling (resfriamento seletivo da cabeça com controle automático de temperatura): o palestrante apresentou o resfriamento seletivo de cabeça como um dos métodos iniciais utilizados, embora com pouca adoção posterior devido ao alto custo e à ausência de vantagens significativas que justificassem sua manutenção; 
  • Whole-body hypothermia (resfriamento do corpo inteiro com controle automático de temperatura): o método mais amplamente empregado é o resfriamento corporal total, ilustrado pelo ensaio original com aEEG de Shankaran et al., 2005, no qual se utilizou um cobertor térmico associado a outra camada isolante, de modo a estabilizar a temperatura e evitar oscilações térmicas acentuadas. O palestrante mencionou ainda a existência de sistemas de resfriamento corporal total mais sofisticados, como aqueles empregados no Reino Unido, incluindo o estudo TOBY (Azzopardi et al., 2009), embora a maioria dos centros utilize equipamentos simples, como cobertores de resfriamento, para manter a hipotermia leve ; 
  • Phase changing materials (materiais com mudança de fase sem controle automático de temperatura): utilizado no ensaio clínico randomizado (ECR) Whole-body hypothermia for term and near-term newborns with hypoxic-ischemic encephalopathy: a randomized controlled trial (Jacobs et al., 2011), onde foram incluídos 221 bebês de 28 centros participantes na Austrália, Nova Zelândia, Canadá e EUA. Nesse método, a hipotermia é alcançada desligando os sistemas de aquecimento do ambiente e aplicando bolsas de gel “quente-frio” (a 10 °C) ao redor da cabeça do bebê e sobre o tórax, de modo que a temperatura retal seja reduzida para 33°–34 °C. 

O que diz a revisão sistemática “Cooling for newborns with hypoxic ischemic encephalopathy”, publicada na Cochrane Database of Systematic Reviews em 2007 e atualizada em 2012 e 2022? 

Os 11 ECR avaliando cerca de 1500 RN demonstram que a HT reduz a mortalidade e melhora o neurodesenvolvimento em RN a termo e pré-termo tardios com EHI moderada a grave, sem aumento de incapacidades importantes, e que seu benefício supera os efeitos adversos imediatos, de modo que o resfriamento deve ser iniciado nas primeiras seis horas de vida, enquanto novos estudos ainda são necessários para aperfeiçoar critérios de seleção, duração e métodos de aplicação da terapia. Segundo o Dr. Soll, apesar de a EHI ser relativamente comum, cada profissional encontra poucos casos anualmente, o que dificulta alcançar grandes amostras. A revisão focou na mortalidade e, ao apresentar os resultados individuais e combinados dos ensaios, apontou que a HT estava associada a uma redução de aproximadamente 25% no risco relativo de morte. 

Recomendação da ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) 

“As unidades de terapia intensiva neonatal (UTIN) devem agora considerar a adoção de um dos protocolos validados para seleção de RN a termo com EHI, bem como estar adequadamente equipadas e treinar suas equipes para oferecer HT de acordo com o protocolo dos grandes ensaios de hipotermia já publicados. Como a EHI é uma condição relativamente incomum, seria altamente desejável, sempre que possível, centralizar esse tratamento em unidades de maior porte. Com os dados atualmente disponíveis, já não existe justificativa razoável para negar esse tratamento aparentemente eficaz àqueles que mais urgentemente dele necessitam.”  

Desafios na transposição da evidência científica para a prática clínica 

Segundo o Dr. Soll, a transposição da evidência da HT para a prática clínica envolve equilibrar três dimensões: sua eficácia, demonstrada em condições ideais e em populações rigidamente selecionadas, nas quais o resfriamento leve iniciado antes de 6 horas oferece clara neuroproteção; sua efetividade, que depende de avaliar se o método funciona igualmente bem em RN mais ou menos graves, fora da janela estreita dos estudos e em associação a outras terapias; e sua eficiência, que exige identificar quais modelos de resfriamento utilizam melhor os recursos disponíveis sem perda de benefício. 

O palestrante citou um estudo muito interessante para ilustrar essas questões: Effect of Therapeutic  Hypothermia  Initiated After 6 Hours of Age on Death or Disability Among Newborns With Hypoxic-Ischemic Encephalopathy: A Randomized Clinical Trial (Laptook et al., 2017). Este estudo concluiu que a hipotermia iniciada entre 6 e 24 horas após o nascimento em RN a termo com EHI pode oferecer algum grau de benefício, com probabilidades estimadas de 76% de redução em morte ou incapacidade e 64% de ao menos 2% de redução nesse desfecho aos 18 a 22 meses, embora ainda exista incerteza relevante quanto à real magnitude de sua efetividade. 

Conclusão 

Diante do exposto pelo palestrante, podemos concluir que a HT consolidou-se como a principal estratégia de neuroproteção na EHI, com benefícios comprovados quando aplicada de forma precoce e com o uso de protocolos, mas existem muitos desafios relevantes para ampliar sua efetividade e eficiência no mundo real. Ele nos mostrou que a transposição da evidência para a prática exige critérios rigorosos de seleção, infraestrutura adequada, capacitação contínua das equipes e investigação contínua para aprimorar o alcance, a precisão e a segurança dessa intervenção crucial na perinatologia do século XXI.