Um dia após ter a prisão preventiva decretada, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem, em audiência de custódia no Supremo Tribunal Federal (STF), que a “alucinação” de que haveria uma escuta em sua tornozeleira eletrônica e uma “certa paranoia” motivaram o uso de um ferro de solda no equipamento entre a noite de sexta-feira e a madrugada de sábado. A violação do aparelho de monitoramento foi um dos motivos citados pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, para determinar a transferência do ex-mandatário para uma sala na Superintendência Regional da Polícia Federal. Bolsonaro teve a prisão preventiva mantida ao fim do depoimento.

A decisão de Moraes será submetida aos demais integrantes da Primeira Turma da Corte hoje. A confusão mental foi usada como argumento pela defesa para pedir que a prisão preventiva seja revista.

Durante a audiência por videoconferência, o ex-presidente disse ter agido sob o efeito de dois remédios, que lhe causaram os trantornos mentais. O ex-mandatário disse que começou a tomar um dos medicamentos quatro dias antes da ação, prescrito por uma médica que não faz parte da equipe que o acompanha regularmente. Dois remédios foram citados por ele: pregabalina, um anticonvulsivante usado para tratar ansiedade; e sertralina, um antidepressivo.

“O depoente respondeu que teve uma ‘certa paranoia’ de sexta para sábado em razão de medicamentos que tem tomado receitados por médicos diferentes e que interagiram de forma inadequada”, diz a ata da audiência, divulgada pelo STF.

De acordo com a psiquiatra Natalia Travenisk Hoff, os dois medicamentos podem ser utilizados conjuntamente. Ela pondera que embora a sertralina possa causar alucinações e agitação, isso ocorre em menos de 2% dos pacientes. A pregabalina também pode causar desorientação em menos de 2% dos pacientes e confusão em menos de 7% deles.

— É um efeito que vai acontecer com maior frequência no início do tratamento (nas primeiras semanas) ou quando há ajustes abruptos de dose — explica Hoff.

Bolsonaro usou um ferro de solda para tentar separar a parte da tornozeleira que informa a localização da cinta que o liga ao tornozelo. Em um vídeo gravado pela Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF), o ex-presidente disse que tentou abrir o equipamento por “curiosidade”.

Ao STF, Bolsonaro complementou que não teve ajuda na iniciativa e que as três pessoas que estavam na sua casa (a filha, um irmão e um assessor) dormiam no momento. O ex-presidente também disse que “começou a mexer com a tornozeleira tarde da noite de sábado e parou por volta de meia-noite”, mas que depois “caiu na razão” e interrompeu a tentativa de danificá-la. Na madrugada de sábado, ele havia dado uma versão diferente aos agentes que foram ao local verificar a violação, dizendo que começou no “fim da tarde”.

O ex-presidente ainda afirmou que “não tinha qualquer intenção de fuga e que não houve rompimento da cinta” da tornozeleira, em referência ao pedaço que prende o equipamento ao tornozelo. Ele acrescentou que sabe usar um ferro de solda, que foi usado na tentativa de danificar o aparelho, porque já fez um curso de como manuseá-lo.

Sobre a vigília convocada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), outro motivo apontado para a prisão, o ex-presidente destacou que “o local fica a 700 metros da sua casa, não havendo possibilidade de criar qualquer tumulto que pudesse facilitar hipotética fuga”.

Ao fim da audiência, a juíza auxiliar Luciana Sorrentino homologou o mandado de prisão, já que Bolsonaro não relatou “qualquer abuso ou irregularidade por parte dos policiais responsáveis pelo cumprimento”.

Após o depoimento, a defesa usou a situação médica do ex-presidente, classificada de “confusão mental”, para solicitar a reconsideração da prisão preventiva. No sábado, Moraes havia dado 24 horas para os advogados de Bolsonaro explicarem a violação da tornozeleira. “Requer-se que estas novas informações sobre o quadro de confusão mental que pode ter sido causado pelos medicamentos ingeridos sejam levadas em consideração para a reconsideração da decisão que decretou a prisão preventiva”, dizem.

Em boletim divulgado após analisar a condição de saúde do ex-presidente, a equipe médica de Bolsonaro diz que o quadro de confusão mental foi “possivelmente induzido pelo uso do medicamento pregabalina, receitado por outra médica, com o objetivo de otimizar o tratamento, porém sem o conhecimento ou consentimento” dos médicos Claudio Birolini e Leandro Echenique, que assinam o documento:

“Esse medicamento apresenta importante interação com os medicamentos que ele (Bolsonaro) utiliza regularmente para tratamento das crises de soluço (clorpromazina e a gabapentina) e tem como reconhecidos efeitos colaterais, a alteração do estado mental com a possibilidade de confusão mental, desorientação, coordenação anormal, sedação, transtorno de equilíbrio, alucinações e transtornos cognitivos”, diz o boletim.

Os médicos de Bolsonaro ressaltam que o uso da Pregabalina foi “suspenso imediatamente, sem sintomas residuais neste momento” e que vão realizar avaliações periódicas no ex-presidente. Apontada como responsável por receitar o remédio, a médica Marina Pasolini também esteve ontem na Superintendência da PF. Na chegada, disse que iria avaliar a condição de saúde do ex-presidente. Ela deixou o local sem dar declarações.

Além dos médicos e dos advogados, o ex-presidente recebeu ontem a visita da mulher, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, após autorização de Moraes. Ela ficou no local por quase duas horas e, ao sair, o ex-presidente foi visto se deslocando entre a sala de visitas e o local onde está custidado. Michelle estava em Fortaleza para um evento do PL no momento em que Bolsonaro foi preso, na manhã de sábado.

Moraes autorizou a visita de familiares “às terças-feiras e quintas-feiras, das 9h às 11h, com duração de trinta minutos, com limitação de dois familiares por dia de visita”.

De acordo com pessoas próximas, no primeiro dia de prisão, o ex-presidente evitou fazer refeições com os itens oferecidos pela PF, optando por um cardápio com baixo teor de gordura, seguindo recomendação. No domingo, comeu pão com ovo e café com leite pela manhã. No almoço, aliados afirmam que a opção foi novamente por comida caseira, descrita como simples e sem gordura.

Causa e efeitos: os medicamentos citados

  • Pregabalina – É um anticonvulsivante que age regulando a transmissão de mensagens excitatórias entre as células nervosas, segundo a bula. É mais utilizado para quadros ansiosos e de dor crônica. Bolsonaro passou a utilizá-lo por causa de soluços.
  • Sertralina – É um inibidor seletivo da recaptação de serotonina para quadros depressivos e ansiosos. Segundo a psiquiatra Natalia Hoff, os dois medicamentos podem ser utilizados juntos, mas é preciso estar atento ao aumento do risco de alguns distúrbios.
  • Clorpromazina e gabapentina – Foram os dois medicamentos citados pela equipe médica, usados pelo ex-presidente para tratar suas crises de soluços. O primeiro é usado para transtornos mentais; o segundo, um anticonvulsivante para epilepsia e dor neuropática.
  • O que Bolsonaro alega – Na audiência de custódia, Bolsonaro citou o uso de pregabalina e sertralina e que a paranoia foi “em razão de medicamentos que tem tomado receitados por médicos diferentes e que interagiram de forma inadequada”.
  • O que a defesa alega – Já os advogados afirmam que o quadro foi possivelmente induzido pelo uso de pregabalina, receitado por outra médica, sem o conhecimento dos especialistas que assinam o documento. E que ela teria reagido a dois medicamentos: clorpromazina e gabapentina.
  • O que dizem especialistas – Sobre os medicamentos citados por Bolsonaro, o principal risco do uso conjunto é a baixa de sódio no sangue, que pode causar náuseas, vômitos, dor de cabeça, dificuldade de concentração, confusão mental, sonolência e alucinações em casos mais graves.

(Colaborou Giulia Vidale)