Na noite de 22 de fevereiro, Estúdio 1 da RTP, um galante Carlos do Carmo estreia as canções, em passeio, ainda sem os autores identificados; duas semanas depois, é guiado pela eterna dupla Ana Zanatti e Eládio Clímaco, numa finalíssima didática, com apontamentos do maestro António Vitorino de Almeida — “o que é que vem para aqui fazer um gajo da clássica”. Entre o plateau e o piano, num ímpeto frenético, analisa cada canção, em sessões de debate livre com uma plateia de figuras públicas, barbudos revolucionários, senhoras de laca e gaiatos aborrecidos — “Um festival chamado Vitorino”.

O vencedor do Festival da Canção, em reflexo dos anseios democráticos, foi definido por “votação pública”, através de cupões distribuídos pelos jornais, que são cortados, preenchidos e enviados para a RTP. Uma Flor de Verde Pinho, poema de Manuel Alegre dos tempos do exílio, resgatado pelo amigo José Niza, foi o campeão da noite (25,25% dos votos), taco a taco com Novo Fado Alegre, de Fernando Tordo e Ary dos Santos (23,97% dos votos).

A corrida a dois foi um espelho perfeito do momento político à esquerda. “A votação das canções entrou muito num jogo partidário”, comenta um dos convidados da plateia, durante a transmissão em direto. “Influenciou altamente o povo pela proximidade do ato eleitoral”. O célebre crítico de televisão, Mário Castrim, comunista sobrevivente do PREC, apontou o “Novo Fado Alegre” como a única canção de resistência ao 25 de Novembro, não por acaso, composta por dois militantes do PCP. Em período eleitoral, esta competição de cantigas foi uma sondagem à boca de urna: vencem Manuel Alegre e José Niza, dois candidatos à Assembleia da República pelo Partido Socialista (PS), que doam o prémio de 50 contos à campanha de Mário Soares.

“Dentro de 3 minutos iniciaremos um período de emissão a cores”. E surge o jornalista Adriano Cerqueira com uma indumentária que, até aquele momento, era absolutamente digna à ocasião — “Especial Eleições” da RTP — e agora, as cores revelam um blazer mostarda e uma gravata apalhaçada, às bolas vermelhas. Para o bem e para o mal, as eleições legislativas, a 25 de Abril de 76, foram um abrir de olhos: uma vitória expressiva do PS, seguido, a dez pontos percentuais, pelo PPD de Francisco Sá Carneiro, e, pasmem-se, o CDS de Diogo Freitas do Amaral. Esta reviravolta sociológica ocorreu, ao mesmo tempo, noutro formato de sufrágio universal: a tabela de vendas da música popular.

No próprio dia de eleições, as canções mais vendidas também desenham um país a cores, em tons pastel, de inspiração nipónica. Os dois singles mais vendidos são genéricos de desenho-animado, a “heroína japonesa” Heidi e as “Aventuras de Wickie, O Viking”, dois sucessos esmagadores da RTP que comprovam como a televisão pública, sobretudo após o PREC, sentou milhões de portugueses em casa. E a canção mais popular entre os graúdos segue a paleta reluzente, Ontem, Hoje e Amanhã, um clássico José Cid, de marca registada: o sintetizador brincalhão, os versos nostálgicos, e aquele slide à George Harrison, em cheio no ouvido de qualquer transeunte, sem resquício de comício, menção à reforma agrária, sequer os malefícios do patronato.