A incidência de câncer de tireoide aumentou nas últimas três décadas sendo a neoplasia endócrina mais comum.  Este fenômeno ocorre em grande parte pelo aumento da detecção de tumores papilíferos de comportamento indolente, e por outro lado, as taxas de mortalidade permaneceram estáveis ou com discreto declínio. O aumento do número de casos diagnosticados não se traduziu em aumento da mortalidade. 

Overdiagnosis, ou sobrediagnóstico na língua portuguesa, pode ser definido como o diagnóstico de uma doença que não causa sintomas clínicos ou morte ao paciente dependendo da sua apresentação clínica. Seus resultados para os pacientes podem incluir uma jornada pelos serviços de saúde composta por tratamentos ou exames invasivos, estresse físico e emocional além do gasto financeiro, tanto para o indivíduo quanto para o sistema de saúde no qual ele está inserido. Há um consumo de recursos humanos e materiais que poderiam ser direcionados para outros serviços de saúde, tornando-os mais efetivos e acessíveis. 

No contexto de câncer de tireoide o overdiagnosis foi tão intenso e radical que para alguns autores mudou o cenário epidemiológico dessa doença. Essa mudança foi variável entre diferentes países. Em países como EUA e Coréia do Sul, onde esse fenômeno ocorreu mais precocemente e houve a percepção de sua ocorrência pela comunidade médica, surgiram recomendações de medidas para desintensificar o manejo de nódulos da tireoide. 

O objetivo desse importante estudo publicado no final de 2024 na The Lancet Diabetes & Endocrinology, prestigiado periódico com um dos mais elevados fatores de impacto da área, por pesquisadores da International Agency for Research on Cancer, órgão da World Health Organization – WHO, foi apresentar uma avaliação abrangente das características epidemiológicas específicas do câncer de tireoide e fornecer estimativas de overdiagnosis em países de 5 continentes. 

sobrediagnóstico do câncer de tireoide

Métodos 

Estudo de base populacional, realizado pela análise de incidência anual de câncer de tireoide por sexo e por grupos de idade agrupados por 5 anos contidos na base de dados da International Agency for Cancer Observatory WHO para o período de 1980-2017. Sendo excluídos de registros de câncer com menos de 15 anos consecutivos de dados (de 2003-2017). Sendo selecionados 97 registros de 43 países em cinco continentes.  

O método de estimativa de sobrediagnóstico se baseou no fato que a taxa de incidência idade-específica para o câncer de tireoide segue uma tendência típica para cada país no período anterior do advento da ultrassonografia e essa tendência se manteria caso não houvesse sobrediagnósticos realizados graças a utilização da ultrassonografia. 

 Casos atribuíveis ao sobrediagnóstico foram estimados baseados na diferença entre as taxas observadas e esperadas para cada grupo de idade para cada país. Sendo a hipótese que a curva da taxa de incidência esperada por idade mantém uma forma histórica até o período anterior ao momento do advento da ultrassonografia e a realização de “screening de oportunidade” da glândula tireoide, quando passou a ocorrer os achados fortuitos de nódulos em tireóide. 

Resultados e discussão 

O estudo identificou que as taxas de incidência de câncer de tireoide aumentaram para a maioria dos países de 1980-2017, com as mais altas observadas na Coréia do Sul, Chipre, Equador, China e Turquia, para homens e mulheres.  

Uma grande diferença foi observada entre os valores de incidência e mortalidade, sendo também significativo o incremento das taxas de incidência ao longo dos anos. Houve grande variação desses valores entre os diferentes países analisados, chegando a 103,6 casos por 100 000 mulheres. Por outro lado, as taxas de mortalidade foram substancialmente menores comparadas às de incidência e com menor variabilidade entre os diferentes países e ao longo do período analisado, permanecendo por volta de 1-2 por 100 000 habitantes. 

As tendências de variação de incidência apresentaram três padrões distintos: a maioria dos países analisados apresentaram um aumento contínuo da incidência, observado em Equador, China, Turquia, Costa Rica, Colômbia e Croácia, com incidência ajustada por idade superando 20 por 100 000 mulheres de 2007-2017. 

Um segundo padrão foi observado de tendência de aumento da incidência até início da primeira década dos anos 2000, seguido por um declínio nos anos seguintes, notadamente na Coréia do Sul, EUA, Canada, Israel e alguns países da Europa Ocidental como França, Itália, Áustria e Irlanda.  

E um terceiro padrão de tendência de taxa de incidência foi estável ao longo do tempo em poucos países como Índia, Uganda, Filipinas e Tailândia.  

A taxa de mortalidade se manteve estável ao longo dos anos para a maioria dos países da América Latina, Caribe, América do Norte e Filipinas e Tailândia na Ásia e apresentou discreto declínio na Europa.  

A magnitude de sobrediagnóstico foi maior em mulheres, tanto em números absolutos e proporcionais em comparação aos homens. Ela também apresentou variação entre os diferentes países avaliados, sendo ausente em países como Uganda, Zimbabue e Trinidade e Tobago, países com reconhecida e crônica limitação de acesso à serviços de saúde e no outro extremo, chegou a ser superior a 85% dos casos diagnosticados para mulheres em países como China, Coréia do Sul e Turquia. Para o Brasil o estudo identificou 75,2% de sobrediagnóstico para mulheres no Brasil no período analisado. 

A estimativa dos autores foi que mais 1,7 milhão de casos de câncer de tireoide foram associados a sobrediagnostico (dos quase 2,3 milhões de casos diagnosticados) em 5 anos (de 2013-17), em 63 países, analisando dados de alta qualidade de registros de bases de dados populacionais e que essas as taxas de incidência continuam a aumentar. 

Paralelamente foi identificada a estabilidade das taxas de mortalidade, inclusive com algum declínio bastante modesto visto em alguns poucos países europeus e que a mortalidade se concentra nos casos de alto risco, em particular tumores anaplásicos e pouco diferenciados e em pacientes de idade mais avançada.  

Para o grupo de países com queda da taxa de incidência após o início dos anos 2010, não foi identificado aumento da taxa de mortalidade após esse período, mostrando um padrão constante da mortalidade por câncer de tireoide ao longo do tempo, independente de taxa de incidência ser crescente ou não. 

Mensagem prática 

O estudo trouxe informações relevantes sobre a incidência e mortalidade do câncer de tireoide em diferentes países nos últimos anos e a magnitude do sobrediagnóstico de câncer de tireoide, informações bastantes pertinentes para a prática clínica trazendo uma perspectiva sobre o impacto populacional de uma conduta comum de pedir uma ultrassonografia de tireoide para um paciente que nem sempre possui a indicação de fazê-lo. 

Screening para câncer de tireoide é desaconselhado por diferentes guidelines há anos, mas exames de oportunidade são realizados de forma massiva em diferentes países em variados graus e o estudo trouxe o resultado dessa prática.  

O uso do rótulo de “customizar” o atendimento de cada paciente com nódulo de tireoide para justificar a realização de exames e procedimentos quando não há expressa indicação de fazê-los, não considerando o que há de evidência científica, não se traduz necessariamente na melhor conduta para o paciente ou para o sistema de saúde no qual ele está inserido. 

A literatura é robusta sobre o caráter indolente dos carcinomas bem diferenciados de tireoide, que são a grande maioria dos casos e sua abordagem deve levar em conta essa característica. Tal fato não exclui a existência de casos com comportamento mais agressivo e desfecho desfavorável, mas felizmente esses casos são a exceção.