Em 2023/24, o Nice foi o primeiro grande palco na carreira de Francesco Farioli. Esta quinta-feira, o treinador do FC Porto reencontra o clube que o lançou na ribalta europeia e fá-lo como um técnico mais maduro, mais direto e, acima de tudo, fiel às suas ideias.

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As adjetivações partem de Jarkko Tuomisto, adjunto finlandês que esteve ao lado do italiano desde 2020 e que recordou os bastidores dessa ‘viagem’ em conversa com o zerozero.  

qPercebi logo que tinha uma visão mais ampla, não via a posição isolada, via o jogo como um todo

Jarkko Tuomisto, ex-adjunto de Farioli

Quando Francesco Farioli chegou ao FC Porto no verão, houve quem visse apenas um nome novo, jovem, vindo de experiências turbulentas em Nice e no Ajax. Três meses depois, o discurso mudou. O italiano, de 36 anos, trouxe ao Dragão um futebol reconhecível, estruturado, geométrico nas distâncias e ambicioso com bola – e o reencontro com o Nice funciona agora como teste do que sempre foi do que está a construir em Portugal..

Para compreender Farioli, é preciso recuar quase uma década. Quem o diz é Tuomisto, companheiro desde os dias de anonimato no Catar. «Conhecemo-nos em 2015, na Aspire Academy. Éramos os dois treinadores de guarda-redes, mas ele já pensava o jogo muito além disso», recordou, em conversa com o nosso portal: «Percebi logo que tinha uma visão mais ampla, não via a posição isolada, via o jogo como um todo.»

Essa visão (quase obsessiva) foi o que os uniu anos depois, quando Farioli decidiu abandonar o posto de adjunto de Roberto De Zerbi para se lançar sozinho no Karagumruk, na Turquia. «Ele disse-me: ‘Há uma oportunidade. Se der, quero fazer isto contigo’. Partilhávamos a mesma ideologia e ele sabia exatamente o que queria», relembrou Tuomisto. A dupla seguiria junta até 2024.

«Liga dos Campeões? Já estávamos a superar muita coisa»

No FC Porto, uma das primeiras marcas visíveis foi o rigor posicional – uma assinatura antiga. «O que já se vê agora é o que ele sempre quis desde o início», explicou Tuomisto, indo mais longe: «Ele não é alguém que muda de direção de um dia para o outro. Tem um plano e adapta tons, não princípios.»

O finlandês descreve-o como um treinador que trabalha de cima para baixo: primeiro a ideia, depois o detalhe: pequeno, insistente, quase exaustivo.

«Ele trouxe para o cargo de treinador principal o olhar do treinador de guarda-redes: a atenção microscópica aos detalhes, mas sempre integrado numa visão global do jogo. Poucos conseguem equilibrar essas duas coisas», considerou.

Tuomisto e Matheus na temporada no Ajax @Getty / BSR Agency

Quando o Nice apareceu em 2023, foi o primeiro grande palco. A escolha surpreendeu a própria equipa técnica: «Não esperávamos. Tivemos muitos ‘quase’, muitos clubes interessados. O Nice aconteceu porque percebemos que partilhávamos os valores com o clube.»

O arranque da Ligue 1 deu força ao projeto. O Nice chegou a liderar o campeonato e seguiu várias jornadas no segundo lugar. Mas, como Tuomisto sublinhou, esse sucesso inicial teve um efeito secundário: inflacionou expectativas que nunca foram realistas.

«O Nice não é candidato ao título em França. Mas quando se ganha muito no início, as pessoas começam a acreditar nisso. O problema é que estávamos a pendurar-nos por um fio: defendíamos muito bem, concedíamos expected goals baixíssimos, mas criávamos poucos golos. A longo prazo, é difícil manter-se no topo assim», asseverou.

A queda de rendimento – semelhante à que mais tarde viveria no Ajax – nunca foi, garantiu Tuomisto, um drama de balneário:

«O sentimento era simples. Tínhamos de fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance. Sabíamos que algumas equipas estavam estruturalmente mais preparadas para aguentar a época toda. A tabela final fica quase sempre próxima do que é justo. Alguns sonharam com a Liga dos Campeões quando estávamos em segundo, mas realisticamente seria preciso fazer mais do que o previsto. E já estávamos a superar muita coisa.»

Ainda assim, Tuomisto insistiu: não houve rutura, não houve tensão. «Os jogadores sentiram que o staff os ajudava. O nível de detalhe era apreciado, mesmo que fosse exigente. Nunca houve portas fechadas ou guerras internas.»

No final, restou um quinto lugar a quatro pontos do acesso à qualificação para a Liga dos Campeões. Seguiu-se uma temporada no Ajax, reconhecida pela perda do campeonato nos últimos instantes e, agora, o FC Porto – mas com caminhos distintos.

«É das pessoas mais respeitadoras e leais com quem trabalhei»

A conversa entre o zerozero e Tuomisto desenrolou-se e o assunto tornou-se um círculo. Se há algo em que Tuomisto insistiu foi o caráter de Farioli. Chamou-lhe «direto». Não no sentido brusco, mas na ausência total de «jogo político».

«Ele diz exatamente o que precisa de dizer a um diretor desportivo, a um presidente, a um jogador. Seja a quem for. Sabe o que precisa para ter sucesso e não hesita. É das pessoas mais respeitadoras e leais com quem trabalhei», atirou o finlandês.

O atual treinador de guarda-redes do Basaksehir não gosta de contar «histórias engraçadas», mas admitiu que, no dia a dia, o italiano podia ser tão exigente que era quase impossível aguentar o ritmo sem uma dedicação absoluta.

«Para estar perto dele, tens de estar preparado para dar tudo. Caso contrário, não duras duas semanas.»

Tuomisto fez parte da turma de Francesco Farioli durante quatro anos. Finda a trajetória no Ajax, os caminhos divergiram. No entanto, não fica qualquer mágoa.

«Claro que a primeira sensação é de desilusão. Trabalhámos juntos durante vários anos e conhecemo-nos há ainda mais. Mas é normal mudar pessoas, mudar dinâmicas. O respeito entre nós é total», descreveu.

qPara estar perto dele, tens de estar preparado para dar tudo. Caso contrário, não duras duas semanas.

Jarkko Tuomisto, ex-adjunto de Farioli

E esse respeito é tanto que o orgulho do triunfo do amigo permanece intacto: «Não gosto de fazer previsões porque sou supersticioso e tenho medo que corra mal, mas ele vai chegar muito longe. Não tenho dúvidas disso.»

O reencontro com o Nice, esta quinta-feira, tem sabor simbólico: é o lugar onde Farioli se testou entre os grandes, onde descobriu que as ideias resistiam ao impacto de um balneário de elite e onde percebeu que nem sempre os ciclos duram aquilo que a lógica dita.

Hoje, no FC Porto, está mais preparado. Com a mesma obsessão pelo detalhe. Com a mesma ideia-mãe. Com mais maturidade, mais capacidade de adaptação e mais contexto. Nice foi o abrir da porta de entrada. O Dragão tem sido sala principal.