Cantor, compositor e escritor carioca radicado há mais de uma década em Portugal, Luca Argel se sentiu impelido a revisitar a obra de Vinicius de Moraes (1913-1980) jogando luz sobre um aspecto controverso de sua poética: o machismo.

O resultado dessa investida é o disco “Meigo energúmeno” e o livro “Meigo energúmeno – Notas para uma leitura antimachista de Vinicius de Moraes”, obras que ele lança em Belo Horizonte, respectivamente, nesta terça-feira (5/8), na Casa Outono, e amanhã, na livraria Quixote.

O artista destaca que se trata de uma revisão crítica cirúrgica e respeitosa, que passa longe dos processos difamatórios típicos das redes sociais. Ele observa que, como qualquer artista, Vinicius de Moraes é filho de seu tempo, “um tempo em que os amores nem sempre tinham o mesmo horizonte de diversidade que têm hoje, quando os papéis de homens e de mulheres na sociedade eram muito menos flexíveis, e onde certas manifestações do machismo nem sequer tinham sido nomeadas ainda”.

O livro é fruto de sua dissertação de mestrado em literatura pela Universidade do Porto, em Portugal, e remonta a 2013, quando se comemorou o centenário de nascimento do Poetinha. Ele conta que, em razão da efeméride, uma professora resolveu fazer um seminário e o convidou para apresentar um artigo e montar uma roda de samba. “Eu era o aluno brasileiro músico”, diz, justificando o convite. “Peguei a obra dele para reler e poder escrever alguma coisa legal”, recorda.

Argel ressalta que Vinicius é um expoente da cultura brasileira com cuja obra todo mundo lidou em algum momento da vida. Ele conta que tinha consumido seus livros e músicas na adolescência e que, no reencontro com essa obra, algumas coisas lhe soaram datadas, estranhas. “O tema do amor, a forma do homem se relacionar com a mulher, os estereótipos de gênero, o ciúme, a objetificação, o paternalismo, aspectos que eu não tinha ferramentas para entender quando jovem”, cita.

Ele conta que preparou um material para o seminário, apresentou, mas achou insuficiente, por isso resolveu direcionar seu mestrado para o tema, sob orientação de uma professora que tinha uma cadeira de estudos feministas. Com a dissertação concluída, Argel publicou o livro, pela editora Urutau, e lançou, em sequência, o EP em que reinterpreta seis músicas da lavra de Vinicius: “Tempo de amor”, “Maria Moita”, “Medo de amar”, “Regra três”, “Formosa” e “Broto maroto”.

“Algumas versões que gravei são bem diferentes das originais”, diz, pontuando que não mudou nada nas letras. “São releituras de músicas mencionadas no livro, em que busco chamar a atenção para determinados trechos. Coloquei repetições, mudei o clima de músicas que originalmente são alegres, festivas, para um tom mais sóbrio, para destacar partes das letras”, diz. Ele exemplifica com os versos “Olha que graça de moça / vê que balanço ela tem / e aqui, que ninguém nos ouça / se eu insistir ela vem”, da música “Broto maroto”.

Luca observa que, na versão original, são dizeres que passam com naturalidade, mas que, nas entrelinhas, há um sinal de importunação contra a mulher. “Para que ele consiga a atenção da menina, ele precisa ir lá e insistir, e se precisa insistir é porque ela já não quis. Termino minha versão repetindo esse verso várias vezes, como se fosse a própria insistência dele. É uma forma de desnaturalizar, porque muito da obra de Vinicius tem dessas passagens que a gente tende a naturalizar”, diz.

Critérios

No livro, Argel menciona mais de 50 músicas de Vinicius. Para escolher as seis que gravou no EP, valeu-se de alguns critérios. Um deles, ele diz, são pontos-chave que, nos eventos de lançamento que tem promovido, procura levantar quando tem um tempo mais restrito. “A questão da insistência no momento da conquista também está muito presente em ‘Formosa’, por exemplo. Mas há critérios subjetivos, como eleger aquelas músicas de que gosto mais ou as que ficam bem na minha voz”, conta.

“Regra três”, por exemplo, uma metáfora para, no futebol, se referir ao jogador substituto, deslocada para a ideia de uma namorada substituta, permite a ele tratar da assimetria na relação entre homem e mulher. Ele explica que o título do livro e do disco é tirado de um poema de Vinicius. “É um termo perfeito para explicar minha relação com essa obra, que é meiga, no sentido de ser bonita, apaixonada e apaixonante, e energúmena, porque machista – algo que o próprio Vinicius identificava”, diz.

“MEIGO ENERGÚMENO”
• Show de Luca Argel, nesta terça-feira (5/8), às 20h30, na Casa Outono (Rua Outono, 571, Carmo). Ingressos: R$ 40, à venda pelo Sympla.

“MEIGO ENERGÚMENO – NOTAS PARA UMA LEITURA ANTIMACHISTA DE VINICIUS DE MORAES”
• Lançamento do livro, nesta quarta-feira (6/8), às 18h30, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi), com entrada franca.