Quer celebre o 25 de Abril e/ou o 25 de Novembro, celebra a soberania popular, leis iguais para todos, a obrigação de as cumprir, a separação de poderes. Nenhum dos 25 foi um triunfo da extrema-direita. E nenhum se fez para este Faroeste na Justiça, esta impunidade das autoridades que violam a lei, este ataque à confiança no SNS, esta caça ao imigrante para o explorar e humilhar. O país dos 25 não se compadece com a gritaria de uns e, de outros, língua de pau das “razões técnicas diversas”
Na manhã de terça-feira, vi jatos militares a sobrevoar Lisboa. Lembrei-me que estaria a decorrer, nesse momento, na Praça do Comércio, a parada militar de “celebração do 25 de Novembro”. Tendo ficado o ministro da Defesa com a tutela das celebrações, era natural que quisesse exibir o seu poderio. É poucochinho, mas é o que há. Dizem as notícias que a exibição foi acompanhada por umas dezenas de turistas, entretidos com a beleza das pequenas coisas. Pelas mesmas notícias não percebi se havia mais políticos ou mais “povo” (incluindo turistas mais ou menos divertidos) na parada militar.
Tanto na Praça do Comércio como na Assembleia da República a ideia era replicar no 25 de Novembro as celebrações do 25 de Abril. Foi tudo decalcado do original, menos o que não se pode decalcar: a adesão popular livre e entusiasta. Sem povo não há festa. Há o que houve na 3.ª feira: a bolha política a falar para si mesma, só que, por um dia, rodeada de rosas brancas.
A discussão sobre se prefere o 25 de Abril ou o 25 de Novembro, retirando da resposta conclusões estapafúrdias, é tão útil como perguntar se o menino gosta mais do papá ou da mamã. Ambos foram indispensáveis no processo, embora um com um papel mais prolongado e outro mais pontual. O pai cumpre a função e está feito; a mãe carrega, alimenta, sente os pontapés, tem as dores de parto. São necessário ambos, mas não têm papéis iguais – e é possível, e até saudável, gostar igualmente de ambos.
Tal como a pergunta do papá e da mamã é pueril e inútil, também o é o debate sobre se foi mais importante o 25 de Abril ou o 25 de Novembro. Mas não falta quem o alimente. Em boa medida, para tentar apoucar Abril. Nestes tempos de streaming ao alcance de todos é fácil perceber que uma série de televisão só tem desfecho se tiver um primeiro episódio. É quando tudo começa. Depois há peripécia várias, que podem pôr em causa o desenrolar da história – foi assim nesta nossa série da vida real, exibida ao país entre a primavera de 1974 e o outono de 1975. Houve picos de tensão promovidos por tentativas de contragolpe da direita (o 28 de setembro e o 11 de março), prontamente resolvidos. Entre os derrotados dessas manobras, estava gente hoje com título e estatuto, como Diogo Pacheco do Amorim, ou José Miguel Júdice, que militavam em organizações reacionárias de extrema-direita.
Mas, bem vistas as coisas, o que importa é como começa e como acaba. A democratização do país começou a 25 de Abril e consolidou-se a 25 de Novembro, com a derrota da ala mais radical à esquerda das Forças Armadas. Foi sobretudo um medir de forças entre a esquerda democrática e a esquerda extrema, com o triunfo da primeira, personalizado em Mário Soares. Ramalho Eanes, o operacional que impôs a derrota aos extremistas, emergiu como o novo herói nacional, com o desfecho conhecido.
Sempre me fez espécie a forma como o PS nos últimos anos deu de barato o seu triunfo no dia 25 de Novembro. Para defender abril, “o dia inicial inteiro e limpo”, tratou mal o dia em que essas frágeis primeiras conquistas ficaram garantidas. Que o PCP se demarque de novembro até entendo (embora o PCP tenha sido central para o resultado desse dia, ao mandar travar todos os seus militantes armados que estavam prontos para uma guerra civil). Mas o incompreensível descaso do PS face ao seu papel no 25 de novembro teve uma consequência funesta: a direita extremista, que lutou contra o dia A, e nada fez no dia N, agarrou novembro como se fosse coisa sua.
Felizmente, na cerimónia de 3ª feira o socialista Marcos Perestrello deu o seu a seu dono, reivindicou a herança que é do seu partido, tentou desmontar a falsa oposição entre duas datas umbilicalmente ligadas, e explicou o cinismo do exercício que ali se fazia, por decisão do Governo.
“Evitámos que…” Desculpe: “evitámos”, no plural?
Nada que tenha impressionado André Ventura, que reclamou para si uma luta imaginária e uma vitória fake. E novidades, há?. “Neste dia, há 50 anos, evitámos que a extrema-esquerda, com os seus aliados (…), fizesse aqui o que melhor sabe fazer no mundo inteiro: matar, expropriar, acabar com a liberdade, amordaçar, tiranizar.” Tudo certo: “Portugal não é Moscovo”, como dizia um pregão popular por esses dias. Mas o que faz naquela frase o verbo evitar na primeira pessoa do plural? “Evitámos”?? A extrema-direita do Dr, Pacheco do Amorim não evitou nada, porque por essa altura continuava a magicar novos planos fracassados para voltarmos a 24 de Abril. Mas, enfim, não deixemos que os factos se intrometam na reescrita da História.
Mas o “caso” da sessão foi o acesso de purismo floral do líder do Chega. Numa tribuna decorada com rosas brancas, alguns oradores da esquerda tinham pintalgado o arranjo com cravos vermelhos. “Hoje é dia de rosas brancas e não de cravos vermelhos, por isso estes cravos vão sair daqui”, é uma das frases mais improváveis que saíram da boca de qualquer político naquela tribuna. É cómico e trágico em partes iguais. Filipe Melo, impante, sorria atrás de Ventura, no lugar de secretário de mesa, que continua a ocupar depois da censura parlamentar aos seus comportamentos de taberna.
Ventura, que se notabilizou pelo racismo e xenofobia, alargou o seu reportório à segregação floral. Onde há rosas brancas perseguem-se cravos. Metáforas que caem do céu! Com tanta dedicação a uma espécie de flores (branca, claro!…) talvez se esteja a desperdiçar um talento para a jardinagem ou a decoração de interiores.
Informa-me o ChatGPT que rosas brancas são símbolo de pureza, inocência, paz, espiritualidade, respeito, reverência, e amor puro e sincero. Não tenho estudos sobre isso. Mas não há como fugir à ironia: tudo o que as rosas brancas simbolizam é o oposto do que o Chega representa. O discurso que Ventura gritou – é este o verbo – da tribuna é prova que chegue.
Não foi para isto que…
Não foi para esta gritaria raivosa do alto da tribuna parlamentar que se fez o 25 de Abril. Nem, tão pouco, o 25 de Novembro, momento de combater excessos e de abrir caminho à normalidade democrática e paz social. Sempre celebrei ambas as datas, mesmo quando a esquerda se recusava fazê-lo. Escrevi um livro sobre vários episódios da nossa vida democrática que – et pour cause… – só começa em 1976, porque o PREC era outra coisa.
Celebrar as duas datas permite forcar-se no que ambas têm em comum e o que ambas pretendiam para o país. E o que não pretendiam.
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Não se fizeram os 25’s para que um caso judicial se arraste durante mais de dez anos, como acontece com José Sócrates. Já passaram onze anos sobre a sua mediática prisão preventiva, filmada e tudo, graças às habituais “fugas de informação” que têm sempre o objetivo de garantir uma condenação prévia na praça pública. Se Sócrates usa todas as manobras dilatórias ao seu dispor, é porque elas existem. Se os magistrados mantêm alguém sob suspeita eterna enquanto o fritam na comunicação social, não estão a cumprir a sua missão mais básica, que é aplicar uma Justiça justa.
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Não se fizeram os 25’s para uma Justiça de Faroeste em que cidadãos podem ficar anos sob escuta das autoridades, não para sustentar suspeitas concretas de crimes, mas para ver o que cai na rede. O que se passou com as escutas a gente tão variada como João Galamba, Ivo Rosa ou António Costa, mostra a corrupção moral de um sistema. Se isto se passa com gente de alta notoriedade, que ocupa posições de poder, como pode o cidadão comum sentir-se seguro com esta Justiça?
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Não se fizeram os 25’s para que uma investigação judicial fizesse cair um governo com maioria absoluta. Dois anos depois, ainda se aguardam novidades sobre as suspeitas envolvendo o então primeiro-ministro.
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Não se fizeram os 25’s para que agentes da autoridade manifestem as suas frustrações – pessoais, profissionais, o que seja… – intimidando, agredindo, humilhando, violentando, e até matando, os mais fracos da sociedade: imigrantes minorias étnicas. Um ucraniano que morre às mãos do SEF. Um negro que é morto pela PSP por ter uma faca fantasma. Centenas de migrantes trabalhadores agrícolas explorados e maltratados por militares da GNR (usando farda!) e um agente da PSP. Outros imigrantes trabalhadores agrícolas agredidos, humilhados, torturados e insultados por guardas só por diversão. Agentes da PSP que espancam um imigrante até à morte. Um caso, e mais um caso, e mais um caso… Podemos acrescentar, nesta galeria de horrores fardados, o jovem bombeiro vítima de violação coletiva por parte dos séniores, incluindo um comandante. Ponto curioso: os que passam a vida a apontar o dedo a estas vítimas, não são capazes de abrir a boca sobre estes agressores. Porque há um cálculo eleitoral cínico – é mais importante manter o discurso de ódio e garantir aquele saco de votos, do que fazer a coisa decente.
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Não se fizeram os 25’s para afundar o SNS, arrasando a confiança dos cidadãos na saúde pública. Pelo contrário: os vinte e cincos fizeram-se também para dar ao país um Estado Social que não existia, com Educação, Saúde e Segurança Social para todos.
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Não se fizeram os 25’s para que a luta contra a corrupção na saúde seja entregue a um homem, habituado se ser deus ex maquina, terraplanando instituições e organismos que já têm essa função. Há corrupção na saúde? A catadupa de casos recentes, embora desligados uns dos outros, e de natureza diversa, não deixa dúvidas. Mas, curioso caso, a corrupção – material e/ou moral – de alguns elementos da GNR, da PSP, dos bombeiros ou de militares, não desperta os mesmos instintos que se exaltam com a corrupção na saúde. Os que cavalgam este tema, e aproveitam cada caso para desacreditar ainda mais o SNS, não aplicam o mesmo critério de generalização a outros organismos, como as forças de segurança ou as Forças Armadas (e, no recente caso do Fundão, aos bombeiros). Não é por acaso – é mesmo porque a reputação do SNS é o alvo a abater.
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Não se fizeram os 25’s para que um candidato presidencial, com um vasto currículo de responsabilidades públicas como é Henrique Gouveia e Melo, censure um jornalista por fazer uma pergunta. Talvez o almirante na reserva tenha passado demasiado tempo submerso, mas à superfície é assim que uma democracia funciona: com imprensa livre, com autonomia editorial. Era o que faltava que não se lhe pudesse perguntar, poucas horas depois de José Sócrates ter declarado que votará em Gouveia e Melo, se esse apoio o satisfaz ou constrange. É compreensível que o almirante se tenha sentido melindrado com o apoio de Sócrates. De facto, ninguém merece! Mas censurar uma pergunta legítima, e perfeitamente enquadrada, como Gouveia e Melo fez no debate de ontem, revela uma pele demasiado sensível. Talvez “não ser político” não seja a vantagem que Gouveia e Melo imagina. Dar ordens sem ser questionado pode ser um benefício de quem usa farda, mas não é prerrogativa de quem se sujeita ao jogo eleitoral.
Os vinte e cincos, de abril ou de novembro – escolha o seu, mas também pode acumular –, fizeram-se por muitas razões e trazendo a carga de muito por fazer. Mas, qualquer que seja o seu vinte e cinco, não se fez para o “estado a que isto chegou”.