João Vale de Almeida é um dos principais diplomatas que a União Europeia (UE) já teve. Jornalista de formação, chegou à delegação portuguesa da Comissão Europeia em 1982. A partir daí, sucederam-se as experiências: porta-voz da Comissão, membro da equipa de transição de Romano Prodi, Diretor-Geral de Relações Externas da Comissão Europeia e chefe de gabinete de Durão Barroso. Foi durante o primeiro mandato do português à frente da Comissão que correu mundo e conheceu muitos dos principais líderes mundiais: Tony Blair, Angela Merkel, Emmanuel Macron — e até Vladimir Putin, com que se reuniu muitas vezes. Trabalhou com Barack Obama enquanto embaixador da UE nos Estados Unidos da América e depois foi o representante do bloco europeu nas Nações Unidas. Em 2020, chegou a Londres como embaixador europeu, no período imediato após o Brexit.

Agora reformado, Vale de Almeida decidiu refletir sobre todas essas experiências. Escreveu o livro O Divórcio das Nações — O Colapso da Ordem Mundial Vista Por Dentro (ed. D. Quixote), que será publicado em Portugal no dia 2 de dezembro. Nele reflete sobre os impactos do 11 de setembro e da crise financeira de 2008 na situação atual do mundo, avalia o estado do multilateralismo, tenta projetar o papel do Ocidente no futuro. Mas também revela os bastidores de cimeiras europeias e os contactos em Londres com a imprensa britânica e o próprio Boris Johnson.

Em entrevista ao Observador sobre o livro e as suas memórias — que muitas vezes foi rabiscando ao longo de anos nas notas do seu iPhone em aviões — o embaixador confessa que não pode revelar alguns dos episódios mais caricatos com se deparou ao longo da carreira (“Um dia talvez conte”, diz entre risos). Mas expõe o impacto profundo que a invasão da Ucrânia teve sobre si e reflete sobre aquilo a que chama “the dark side of Putin” (“o lado negro de Putin”). Também dá pistas sobre como os líderes europeus devem lidar com Donald Trump: “Ocupem o terreno, falem com o senhor, vão ver o senhor. Digam-lhe coisas, escrevam-lhe coisas, digam-lhe algumas coisas que o deixem contente”, aconselha.

Não deixa também de falar sobre qual a melhor forma para lidar com os populismos, transversais no Ocidente — a que Portugal, que diz também ter “os seus trumpinhos”, não escapa. E reforça sempre uma ideia: nos bastidores da diplomacia, o futuro do mundo é definido pelas ideias, mas também pela química pessoal entre políticos. “Se há experiência que me marcou foi assistir a encontros entre líderes, quer telefónicos quer presenciais. Aí aprende-se muito da vida, da diplomacia, das relações externas, de tudo o que quiser. Coisas boas e más.”

D. Quixote

Fala no livro de como conheceu e teve reuniões com Vladimir Putin e reflete um bocadinho sobre a personalidade dele. Achei muito curioso ter tido aquele ímpeto de escrever-lhe uma carta diretamente quando a invasão da Ucrânia começou. Nunca chegou a enviá-la… Mas por que é que sentiu a necessidade de pôr isso no papel e de falar diretamente para ele?
Tem piada, porque é a primeira pessoa das que já leram o livro que começa por aí. E eu, de facto, esperava mais que as pessoas começassem por aí [risos]. Aquilo é de tal maneira pessoal, não é? Por um lado, foi absolutamente espontâneo, escrevi aquilo sem uma hesitação. Já nem sei bem onde é que escrevi aquilo… Acho que escrevi no Moleskine, no caderno de notas. À mão, neste caso. E ninguém ainda me falou disso, está a ver? Já me falaram muito do Putin e do encontro com o Putin, do cão do Putin, essas coisas todas, mas ninguém começou por aí. Portanto, agradeço-lhe ter correspondido àquilo que na minha cabeça seria a reação das pessoas. E por que é que acho isto interessante? Porque, e repito o que disse, foi espontâneo, foi pessoal. E tem a ver também com o facto de eu ter estado com ele muitas vezes. Não é propriamente uma pessoa que nunca tenha visto, que nunca tenha sentido próximo de mim. E acho que a descrição que faço daquele encontro de 2006 fala um bocadinho disso também. Foi muito sentido, também porque ele no fundo estava a pôr um ponto final num período da História que me parecia relativamente positivo. Despertou em mim uma grande desilusão, se quiser, e tristeza, em última análise. E pensei na minha geração. Ele é cinco anos mais velho do que eu, não é muito velho. Ainda vai estar ali algum tempo [risos]. E pensei nos meus filhos, pensei nos meus netos: “O que é que você está a fazer com esta invasão?” Acho que essa nota sintetiza um bocadinho a importância da invasão da Ucrânia para as pessoas da minha geração, que viveram todo o ciclo desde a ditadura em Portugal à entrada da União Europeia, ao fim do Muro de Berlim, ao fim da União Soviética e, digamos, ao princípio daquela ideia do fim da História. Tudo isso desabou nessa noite de alguma maneira.

Foi um segundo 11 de Setembro?
Sim, é um segundo 11 de Setembro. O 11 de Setembro e o 24 de fevereiro são os dois… no inglês escrevi “bookends” — não descobri, aliás, tradução para essa palavra. Os bookends são aquelas duas coisas que aguentam os livros nas estantes; o princípio e o fim de um período. E por isso essa nota pessoal que, obviamente, não enviei a ninguém, mas que achei por bem incluir no livro, porque acho que sintetiza um bocadinho a impressão que tive naquela noite. Acordei por acaso dez minutos depois daquilo [a invasão] ter começado. Estava sozinho em Londres. Aquilo tudo tem uma parte de um imaginário… É um fim, um fim de um ciclo de alguma maneira.

Um otimismo que acabava em relação à Rússia de Putin. Teve os seus encontros com ele. Diz que já na altura ele mostrava aqueles agravos, aquelas queixas, mas mesmo assim o embaixador ainda mantinha um certo otimismo.
Sim, não era só eu. A União Europeia investiu muito na relação com a Rússia nessa altura. Era o único país com quem tínhamos duas cimeiras por ano, daí o número tão grande de encontros que tive com ele. Portanto, estávamos a investir bastante. Havia uma corrente dentro da Rússia que queria modernizar a Rússia. O tempo mais otimista, mais positivo, que nos encorajou mais, foi a presença do senhor [Dmitry] Medvedev [Presidente russo entre 2008 e 2012], apesar da invasão da Geórgia. Havia ali uma sensação de que se poderia construir alguma coisa com a Rússia. Acho que em relação a Rússia temos de perceber uma coisa essencial: não podemos mudar a geografia. Eles vão ser sempre o nosso grande vizinho de leste. E ou temos uma relação má, ou temos uma relação assim-assim ou temos uma relação boa — mas vamos ter sempre uma relação. Eles vão sempre determinar largamente a nossa segurança, vão ter uma influência importante. As duas economias são claramente complementares. E do outro lado temos a China. Portanto esta gestão da Eurásia não se faz sem a Rússia. Estamos condenados a viver ao lado da Rússia e, nessa altura, a nossa ideia era “Vamos fazer disto uma relação menos má e uma relação mais segura e mais promissora”.