A I Guerra Mundial já terminou há mais de 100 anos, mas uma das armas químicas que trouxe para o campo de batalha poderá ter regressado recentemente ao ativo na Geórgia. De acordo com uma investigação da BBC, as autoridades georgianas terão usado bromobenzil cianeto — mais popularmente conhecido pela designação francesa ‘camite’ — sobre manifestantes para conter protestos contra o Governo no final do ano passado.
Foram recolhidas inúmeras evidências de que a substância química da I Guerra Mundial terá sido utilizada nos canhões de água a que as autoridades recorreram para dispersar os manifestantes, que expressavam a sua revolta contra a suspensão do pedido de adesão à União Europeia — um objetivo consagrado na Constituição do país. Os sintomas da exposição foram profundos, persistentes durante várias semanas e não desapareciam com a lavagem: falta de ar, tosse, vómitos, fadiga e ardor na pele.
“Dava para sentir [a água] a arder”, disse um dos manifestantes sobre o canhão de água disparado sobre os protestos. No entanto, o Governo georgiano já veio refutar as conclusões da investigação, descrevendo-as como “absurdas”.
O bromobenzil cianeto — ou camite — foi um agente químico usado por França contra as tropas alemãs na I Guerra Mundial, que, por sua vez, também já tinham introduzido o gás de cloro na batalha. O resultado desses testes químicos saldou-se em milhares de mortos. O ‘camite’ não seria letal, porém, da documentação existente sobre este agente químico, concluiu-se que o mesmo terá sido abandonado nos anos 30 devido aos efeitos negativos duradouros, sendo trocado por soluções menos abrasivas e mais seguras, como o gás lacrimogéneo.
Segundo o direito internacional, as forças policiais podem usar produtos químicos para controlar multidões, desde que o seu uso seja seguro, proporcional e com efeitos visíveis apenas no curto prazo.
Konstantine Chakhunashvili, médico pediatra que integrou os protestos em Tiblissi contra o Governo no final de novembro do ano passado, foi um dos manifestantes atingidos pelos canhões de água das autoridades, que usaram ainda outros agentes de dispersão, como gás lacrimogéneo e gás pimenta. E o que sofreu não era nada do que alguma vez tinha visto numa sociedade moderna, com a pele a ser afetada por uma sensação de queimadura durante dias e que não desaparecia com água: “Era pior quando tentava lavá-la”.
Intrigado pelos efeitos, Konstantine Chakhunashvili quis perceber se teria sido uma reação isolada ou se outras pessoas tinham passado por uma experiência similar. Assim, recorreu às redes sociais e lançou um inquérito: quase 350 pessoas responderam e alegaram ter sofrido efeitos secundários durante mais de um mês, algo que não ocorre com as técnicas de dispersão mais comuns, como o gás lacrimogéneo.
WW1 toxic compound sprayed on Georgian protesters, BBC evidence suggests https://t.co/LAL1LyFGmh
— BBC News (World) (@BBCWorld) December 1, 2025
Mais: 69 dos inquiridos foram examinados pelo médico e denotavam também uma “prevalência significativamente mais elevada de anomalias” no ritmo cardíaco. A conclusão do relatório de Konstantine Chakhunashvili foi clara: os canhões de água teriam sido misturados com um produto químico.
Foi então pedido ao Governo que identificasse a substância utilizada, mas o Ministério da Administração Interna recusou fazê-lo. O estudo do pediatra georgiano foi entretanto revisto e aceite para publicação pela revista internacional Toxicology Reports.
Na investigação efetuada pela BBC foram contactadas diversas fontes e denunciantes com ligações ao Departamento de Tarefas Especiais, o nome do organismo responsável pela polícia de choque georgiana, que apontaram esse químico como o ‘camite’ da I Guerra Mundial. Lasha Shergelashvili, ex-chefe de armamento do departamento, revelou que lhe foi pedido em 2009 que testasse uma substância para uso em canhões de água.
Das dificuldades de respiração às dificuldades de limpeza e afastamento dos efeitos persistentes, Lasha Shergelashvili salientou o impacto prolongado: “Percebemos que o efeito não estava a passar, como acontece com o gás lacrimogéneo [normal]. Mesmo depois de lavarmos o rosto com água e, em seguida, com uma solução especial de bicarbonato de sódio e água, preparada com antecedência, ainda não conseguíamos respirar livremente”.
Perante esses efeitos negativos duradouros, o antigo chefe de armamento mostrou-se contra a adoção daquele composto químico. Contudo, assumiu que os canhões de água terão continuado a ser abastecidos com o mesmo até 2022, ano em que deixou o departamento e a Geórgia. Apesar da saída, manteve o contacto com antigos colegas, que confirmaram as suas suspeitas de que os manifestantes teriam sido efetivamente atingidos com o composto que lhe tinham pedido para testar e que não conseguia nomear.
“Não consigo citar um exemplo ou compará-lo com nada [mais]”, referiu, sublinhando que este agente químico é “provavelmente 10 vezes” mais forte do que os mecanismos químicos de controlo de multidões: “Por exemplo, se derramar este produto químico no chão, não poderá permanecer nessa área durante os próximos dois a três dias, mesmo que o lave com água”.
Embora Lasha Shergelashvili não conseguisse indicar o nome concreto do composto químico, a BBC obteve uma cópia do inventário do Departamento de Tarefas Especiais, de dezembro de 2019, que mencionava dois produtos: o líquido UN1710 e o pó UN3439, além de instruções para a sua mistura. De seguida, confrontou essas informações com outros especialistas, que apontaram na direção do ‘camite’ da I Guerra Mundial.
Um desses especialistas contactados foi Christopher Holstege, um especialista mundial em toxicologia e armas químicas, que analisou as informações e conclusões recolhidas. “Com base nas evidências disponíveis… os resultados clínicos relatados tanto pelas pessoas expostas como por outras testemunhas são consistentes com o bromobenzil cianeto”, afirmou.
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Christopher Holstege descartou uma eventual confusão deste composto químico com o convencional gás lacrimogéneo: “A persistência dos efeitos clínicos não é consistente com os agentes típicos utilizados para dispersar multidões. Nunca vi o camite ser utilizado na sociedade moderna. O camite é marcadamente irritante [e] persistente na sua irritação”.
De acordo com o especialista, uma utilização do ‘camite’ pelas autoridades georgianas teriam um forte efeito sobre os manifestantes, uma vez que não era possível de ignorar ou atenuar no curto prazo, podendo implicar assistência hospitalar.
“Iria manter as pessoas afastadas durante muito tempo. Não poderiam descontaminar-se. Teriam de ir ao hospital. Teriam de abandonar a área. Se for esse realmente o caso — que este produto químico foi trazido de volta — isso é, na verdade, extremamente perigoso”, acrescentou.
Já a relatora especial da ONU sobre Tortura, Alice Edwards, manifestou a sua apreensão face à aparente utilização deste composto químico sobre a população georgiana, sendo que a responsável das Nações Unidas já tinha abordado as autoridades daquele país sobre as acusações de violência e tortura policial. “Isso leva-me a considerar [essa prática] como uma arma experimental. E as populações nunca devem ser submetidas a experiências. Isso é uma violação absoluta dos direitos humanos”, afirmou à estação britânica.
Desde então, os protestos em Tiblissi perderam força, embora continuem a verificar-se, com os manifestantes a exigirem a demissão do Governo. Em causa está uma suposta aproximação do executivo a Moscovo e aos interesses russos, divergindo do caminho de integração europeia, além de uma repressão cada vez mais dura contra os protestos.