A história, em 1982, fez correr muita tinta nos jornais – na altura não havia redes sociais, nem canais de televisão privados – que se vendiam como pãezinhos quentes. Na Assembleia da República, Zita Seabra, então deputada do PCP, apresentou o projeto sobre a legalização do aborto, e teve como resposta do deputado João Morgado, do CDS, uma frase que ficou até aos dias de hoje: «A Igreja Católica proíbe o aborto exatamente porque entende que quando se pratica o ato sexual é para se ver o nascimento de um filho».

Não sei se João Morgado era um católico informado, mas o Vaticano esta semana fez uma nota doutrinal, assinada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, o equivalente a um Ministério, onde explica que, ao longo dos séculos, muitos foram os teólogos, sacerdotes e até Papas, que explicaram a importância do sexo num casal, sem necessidade de procriarem, ou tentarem. «Não é de modo algum incompatível com a dignidade objetiva das pessoas que seu amor conjugal envolva “gozo” sexual […]. Existe uma alegria que está em conformidade com a natureza da tendência sexual e, ao mesmo tempo, com a dignidade das pessoas; no vasto campo do amor entre homem e mulher, ele brota da ação comum, da compreensão mútua, da realização harmoniosa de objetivos escolhidos em conjunto. Essa alegria, esse gozo , pode vir tanto do prazer multifacetado criado pela diferença entre os sexos quanto da voluptuosidade sexual oferecida pelas relações conjugais […] desde que seu amor se desenvolva normalmente a partir do impulso sexual», assim escrevia o cardeal Karol Wojtyla, mais tarde Papa João_Paulo II.

Em todo o trabalho do cardeal Victor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério da Fé, há uma preocupação de realçar que os direitos e obrigações no casamento são iguais para homens e mulheres, fala-se em violência doméstica, que é inaceitável, e faz-se quase um tratado sobre como preservar o matrimónio. «A relação íntima e a pertença mútua devem ser mantidas por quatro, cinco ou seis décadas, e isto implica a necessidade de escolherem-se mutuamente repetidas vezes. Talvez o cônjuge já não seja atraído por um desejo sexual intenso que o mova para o outro, mas sente o prazer de pertencer a essa pessoa e de que essa pessoa lhe pertença , de saber que não está sozinho, de ter um “cúmplice” que sabe tudo sobre a sua vida e que partilha tudo. Este é o companheiro na caminhada da vida», escreveu o_Papa Francisco.

A nota doutrinal, que teve a concordância do Papa Leão XIV, é um manifesto em defesa dos casamentos monogâmicos, onde se faz um historial do pensamento da Igreja Católica, procurando a Nota passar a imagem que um casal é um homem e uma mulher, isso é óbvio para a maioria dos cristãos, mas a razão desta observação deve-se ao facto de os bispos africanos terem pedido diretizes ao_Vaticano para saberem como lidar, com caridade, com os fiéis polígamos, que são a maioria em alguns países do continente. A história é ainda mais complexa, pois a Igreja Católica está a perder muitos fiéis para as Igrejas Pentecostais, entre outras, onde os casamentos polígamos são aceites.

No documento, e nas notas finais, lê-se que «o Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar (SECAM) se comprometeu a elaborar um relatório para o Sínodo dos Bispos sobre os desafios da poligamia. Enquanto se aguarda este documento, parece oportuno observar que, segundo uma opinião comum, o casamento monogâmico na África deve ser considerado um fato excecional, dada a prática generalizada da poligamia nessas regiões. No entanto, estudos aprofundados sobre as culturas africanas mostram que as diferentes tradições atribuem especial importância ao primeiro casamento entre um homem e uma mulher e, sobretudo, ao papel que a primeira esposa é chamada a desempenhar em relação às outras esposas. De fato, as pesquisas indicam que a poligamia é uma prática tolerada devido às necessidades da vida (ausência de filhos, levirato, trabalho para a sobrevivência, etc.)».

Já para um padre português, que pediu o anonimato, a situação em África estava a descambar e os bispos pediram ajuda ao_Vaticano que lhes explicou «que quem quer converter-se à Igreja Católica tem de abdicar de todas as mulheres, exceto a primeira. E é precisamente isso que eles não querem, pois pretendem ficar com a última, que é a mais nova. Eles vão para as igrejas evangélicas porque estas aceitam a poligamia. Elas não têm o matrimónio como sacramento».

A miséria no horizonte

Como é natural, depois da publicação da nota Una Caro, Uma Só Carne, surgiram as críticas ao documento. Charles Collins, da Crux, uma publicação que pretende ‘sentir a pulsação da Igreja Católica’, entende que o documento foi um erro e titulou o seu artigo: ‘Ao abordar a poligamia, Vaticano falha em primeiro teste de sinodalidade’. E porque chegou a essa conclusão, o jornalista especialista em assuntos religiosos? Porque diz que a Igreja Sinodal que o_Papa Francisco deixou, fala num «caminhar juntos e ouvir uns aos outros», algo que não aconteceu com a feitura do documento. Charles Collins acusa o prefeito do Dicastério da Fé de ter recorrido a teólogos e filósofos ocidentais que não fazem a mínima ideia dos problemas africanos, pois os ‘novos’ crentes são obrigados a deixar as várias mulheres e filhos, condenando-os à miséria total – muitas são abandonadas no deserto. «É difícil encontrar em Una caro qualquer atenção dedicada às questões familiares enfrentadas pelas esposas e filhos mais afetados pela poligamia. Em vez disso, o tema é tratado como uma questão de estilo de vida sexual, vista através de uma lente teológica de meados do século XX, com o auxílio de alguns poucos versos», escreveu na Crux.

O Dicastério da Fé aproveitou a feitura da Nota para falar também do problema do poliamor. «A poligamia, o adultério ou o poliamor baseiam-se na ilusão de que a intensidade de uma relação pode ser encontrada na sucessão de rostos. Como ilustra o mito de Dom Juan, o número dissolve o nome: dispersa a unidade do impulso amoroso. Se Lévinas demonstrou que o rosto do outro evoca uma responsabilidade infinita, única e irredutível, multiplicar rostos numa união supostamente total significa fragmentar o significado do amor conjugal».

Victro Fernández conclui: «Em última análise, embora cada união conjugal seja uma realidade única, encarnada dentro das limitações humanas, todo matrimónio autêntico é uma unidade composta por duas pessoas, que requer uma relação tão íntima e abrangente que não pode ser compartilhada com outros . Ao mesmo tempo, por ser uma união entre duas pessoas que têm exatamente a mesma dignidade e os mesmos direitos, exige aquela exclusividade que impede que o outro seja relativizado em seu valor único e usado meramente como um meio entre outros para a satisfação de necessidades. Esta é a verdade da monogamia que a Igreja lê na Escritura quando afirma que de dois se tornam “uma só carne”».

Igreja alemã desafia Vaticano

Se a Nota Doutrinal de Victor Fernández passou ao lado da problemática do uso de contracetivos, principalmente em África, se fala claramente na definição de um casal, homem e mulher, é natural que os mais progressistas não tenham ficado contentes.  Onde está a tão chamada abertura, anunciada com o processo sinodal, em que os católicos de todo o mundo foram ouvidos para dizer de sua justiça, questionam-se. Mas o Vaticano vai ter mais dores de cabeça com o que se está a passar na Alemanha. Segundo noticiou o 7Margens, «foi aprovada por unanimidade, este fim de semana, uma nova estrutura permanente da Igreja Católica da Alemanha, designada Conferência Sinodal, com representação de leigos, religiosos e clero, a qual dará continuidade e concretização às conclusões do Sínodo da Igreja Católica daquele país». E o que quer dizer isto? Que a maioria da Igreja alemã vai decidir o seu futuro com os votos de todos, valendo tanto um leigo como um bispo, por exemplo. Se é verdade que há quatro ‘dioceses’ que estão fora de ‘jogo’, sobressaindo a mais rica de todas, Colónia, também não deixa de ser evidente que a corrente mais progressista vai querer apoiar a ordenação de mulheres, o casamento de sacerdotes e a igualdade de direitos para os homossexuais.

Há muito que se fala que poderá sair daqui um novo cisma na Igreja Católica, pois já se percebeu que o Vaticano não tem mãos nos ‘radicais’ alemães. Sendo certo, como é bem visível com o problema da poligamia em África, que os problemas de uns não são iguais aos dos outros…