Viajar num Intercidades em Portugal tornou-se, para muitos, uma lotaria ferroviária: ou há lugar, ou há “bom senso” dos revisores. E se nenhuma das duas coisas aparecer, há o risco real de ficar apeado numa estação vazia, no interior do país, fora de horas

Em Vila Velha de Ródão, sede de concelho com mais de três mil habitantes, já ninguém sabe exatamente quando é que a bilheteira da estação fechou – ou se alguma vez existiu. Ainda assim, todos os dias partem dali dezenas de passageiros rumo a Lisboa, à Covilhã ou a Castelo Branco. Entre eles está Fernando, de 53 anos, que preferiu usar um nome fictício para não ser identificado. Desde que se lembra, entra no Intercidades sem bilhete. Não o faz por desleixo nem para evitar o pagamento, simplesmente não tem onde o comprar.

Para adquirir o título de transporte antes de embarcar, teria de percorrer cerca de 60 quilómetros até Abrantes, a estação mais próxima com bilheteira. É por isso que segue religiosamente o procedimento que a própria CP recomenda para quem vive em localidades sem meio de venda: embarcar e procurar de imediato o revisor.

A recomendação, no entanto, tem um detalhe que não aparece nos cartazes nem nos horários afixados: quando o comboio está cheio, o passageiro que cumpre tudo à risca – e entra legalmente num Intercidades sem bilhete porque não teve alternativa – pode ser obrigado a sair na estação seguinte. E há dezenas de localidades em Portugal onde isto pode acontecer a qualquer momento.

De acordo com informação pública fornecida pela CP, das 77 estações servidas por Intercidades, 33 não têm bilheteira, ou seja, mais de 42% das estações. E entre as que ainda a mantêm, várias funcionam apenas durante a manhã ou encerram por completo ao fim de semana. A bilheteira de Abrantes, por exemplo, só está aberta até às 13:05.

As máquinas automáticas, quando existem – e não estão avariadas ou vandalizadas – não disponibilizam qualquer possibilidade de reserva para os serviços de longo curso. As máquinas com esse serviço só foram instaladas na Grande Lisboa e no Grande Porto, de acordo com o website da CP

De Caminha a Vila Nova da Baronia, de Santa Clara-Sabóia a Ermidas-Sado, milhares de passageiros não conseguem comprar passes, reservar lugares ou adquirir um bilhete antecipadamente para o Intercidades se não tiverem um smartphone ou um computador. Em dezenas de estações – muitas delas servindo concelhos com mais de dez mil habitantes, outras inseridas em territórios extensos e sem alternativas de mobilidade – a experiência ferroviária resume-se a tentar a sorte na lotação do comboio, que só é conhecida à chegada.

De Norte a Sul, dezenas de localidades sem qualquer meio de compra

Os exemplos acumulam-se por todo o país. Âncora-Praia, Amoreiras-Odemira, Messines-Alte, Sabugal, Carregal do Sal, Vizela ou Santo Tirso são apenas alguns casos onde não existe bilheteira funcional, apesar de servirem populações numerosas e, em muitos casos, vastas áreas rurais.

Há ainda situações que se destacam pela dimensão demográfica dos concelhos em causa: Fernando Pó e Poceirão, no concelho de Palmela, com mais de 74 mil habitantes; Pegões e São João das Craveiras, no concelho do Montijo, que ultrapassa os 60 mil; Ermidas-Sado, pertencente a Santiago do Cacém, com mais de 28 mil habitantes; ou Fátima, em Ourém, concelho que se aproxima dos 47 mil. Nenhuma destas estações oferece condições adequadas para comprar bilhetes ou reservas, apesar de estarem inseridas em zonas de elevada procura. O caso do Pragal, em Almada, é particularmente simbólico: um concelho com 183 mil residentes, integrado na maior área metropolitana do país, e cuja estação – paragem oficial de serviços que exigem reserva obrigatória – continua sem bilheteira.

O cenário repete-se em localidades mais pequenas: Vila Nova da Baronia, Alvito, Cuba, Casa Branca, Fornos de Algodres, Vila Velha de Ródão, Funcheira, Belmonte-Manteigas, Caria, Maçainhas. Mesmo com menor população, estas estações desempenham um papel essencial em territórios onde não existe transporte alternativo viável. A lista estende-se a Vendas Novas, Grândola, Vila Nova de Cerveira, Vila Franca das Naves e Benespera.

“Faço tudo como a CP recomenda: entro e procuro logo o revisor. Mas sei que, um dia, vou ouvir que o comboio está cheio e que não me pode vender o bilhete. E aí, o que acontece? Sou posto fora numa aldeia à noite?” Foi perante este receio que Fernando questionou formalmente a CP por email. As respostas escritas, consultadas pela CNN Portugal, não deixam margem para interpretações. 

A empresa afirma que, em qualquer circunstância, se um passageiro embarcar numa estação sem bilheteira e o Operador de Revisão e Venda verificar que o comboio está lotado, “não será possível proceder à venda a bordo”. Nessa situação, o passageiro “é obrigado” a abandonar o comboio na estação seguinte e pode ainda “ficar sujeito ao pagamento de coima por viajar sem título válido”. A CP recorda que, nos serviços Intercidades, a viagem é “obrigatoriamente sujeita a reserva de lugar”, que “não é permitida a viagem em pé” e que “a venda a bordo é estritamente condicionada à existência de lugares vagos”.

Quando confrontada pela CNN Portugal, porém, a CP apresenta um discurso diferente, afirmando que, “em casos de lotação esgotada, e desde que estejam asseguradas as condições de segurança da circulação”, é facultada ao passageiro a possibilidade de prosseguir viagem. A empresa insiste ainda que todos os clientes podem utilizar a aplicação móvel da CP para comprar títulos de transporte, mesmo nas estações onde não existe qualquer meio de venda.

No que diz respeito ao Passe Ferroviário Verde, a CP respondeu por escrito ao passageiro que a compra “só poderá ser efetuada online ou em bilheteira”, mas, à CNN Portugal, garantiu que, quando o embarque ocorre numa estação sem meios de venda, o Passe Verde “aplica-se igualmente” e que a reserva de lugar pode ser feita junto do revisor, desde que haja lugares disponíveis.

O problema agravou-se desde a entrada em vigor do Passe Ferroviário Verde, que permite viagens ilimitadas em todos os Intercidades, mas exige sempre uma reserva gratuita de lugar. A procura disparou, enquanto a oferta se manteve praticamente inalterada. O resultado traduz-se em comboios lotados – sobretudo às sextas-feiras, domingos e vésperas de feriados – e num número crescente de passageiros que, não conseguindo obter uma reserva devido à falta de bilheteiras, entram no comboio sem alternativa viável. Para quem não tem internet, smartphone ou cartão bancário, continua a existir teoricamente a compra a bordo. Mas esta regra deixa de se aplicar no momento exato em que o comboio está cheio – quando mais necessária seria.

Perante esta contradição, a prática no terreno tem sido a de evitar cumprir o regulamento à letra. O Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial Itinerante admite, em declarações à CNN Portugal, que tem “imperado o bom senso”, porque, se os revisores aplicassem a norma formalmente, haveria “conflitos diários, atrasos sucessivos e até supressões de comboios”. O sindicato revela ainda que são “situações infelizmente recorrentes” e que o excesso de lotação desde a implementação do Passe Ferroviário Verde tem sido denunciado recorrentemente e foi um dos pontos em destaque na última greve parcial, que decorreu entre 3 e 13 de novembro.

Em muitos casos, os revisores permitem que os passageiros sigam viagem em pé, mesmo sabendo que a CP proíbe esta prática nos Intercidades. Admitem “desconhecer” qualquer instrução por parte da empresa nesse sentido, mas, explicam, tem sido a única forma de impedir que passageiros sejam deixados em pequenas estações isoladas, algumas delas sem iluminação adequada, sem sala de espera e sem qualquer ligação de transporte alternativa.

Para Carlos Gaivoto, engenheiro especializado em sistemas de transporte, tudo isto resulta de uma “falha de planeamento a vários níveis”. O especialista considera que, “se existe estação, tem de existir bilheteira”, e classifica como óbvio e previsível que o Passe Verde provocaria um aumento explosivo da procura sem que a oferta fosse ajustada.

“Começa logo pelo plano de exploração, que está errado. Como tem havido um fraco investimento no sistema ferroviário, todas estas incoerências e incongruências estão agora a vir ao de cima. Temos de exigir uma aceleração clara do investimento, tanto ao nível da gestão do plano de exploração como ao nível dos equipamentos. Estamos num período de transição há décadas e Isto é inadmissível”.

A título de exemplo, aponta para o caso de Évora. No seu ponto de vista, “não faz sentido” que existam apenas três ou quatro circulações diárias entre Lisboa e Évora, sobretudo quando a cidade alentejana funciona, na prática, “quase como uma área metropolitana”. A oferta ferroviária, sublinha, está muito aquém das necessidades reais da população.

A CNN Portugal sabe que passageiros desta ligação lançaram recentemente uma petição a denunciar a “enorme falta de lugares à disposição”, defendendo o acrescento de uma carruagem de segunda classe para evitar que passageiros viajem de pé – uma prática que, consideram, coloca em causa a sua segurança.

“Depois há todas estas situações conflituosas e quem sai prejudicado é quem quer usar o comboio e não pode ou, pelo menos, não tem as condições de o usar como deve ser”, acrescenta o engenheiro.

“Isto não acontece em nenhum país europeu”

Sobre o facto de os revisores permitirem que os passageiros sigam de pé, explica:

“Os chefes de comboio ficam perante uma situação em que sabem que há insuficiências na oferta. Perante isso, é evidente que não vão aplicar coimas nem adotar qualquer ação penalizadora contra quem simplesmente quer usar o serviço. Era o cúmulo faltar lugares e ainda penalizar os passageiros.”

O engenheiro defende ainda que a gestão da infraestrutura e a gestão da exploração ferroviária deveriam estar concentradas na CP, e não dispersas pela Infraestruturas de Portugal (IP) – uma entidade que, afirma, “não tinha quadros, nem sequer sabia o que era a infraestrutura ferroviária”, estando historicamente mais vocacionada para a área rodoviária. 

“Isto são acontecimentos perfeitamente evitáveis. E eu digo: vai, por exemplo, a França ou a outros países europeus e não encontra este tipo de situações. Isto não acontece em nenhum país europeu. Nunca encontrei nada parecido”.

Quanto às soluções, sublinha que haverá medidas estruturais que terão de avançar, destacando a “tão aguardada” aquisição de novo material circulante, que permitirá reforçar a capacidade de serviço em toda a rede. “Só assim se evita que continuemos a enfrentar este tipo de situação”, conclui.

Fernando, o passageiro ouvido pela CNN Portugal, nunca foi expulso, mas sabe que, a viajar com a CP, existe essa possibilidade. Ainda assim, diz confiar mais no que os revisores lhe dizem no terreno do que nas respostas escritas que recebeu da empresa. Para ele, não é aceitável que um passageiro que não cometeu qualquer infração possa arriscar ser expulso e ainda pagar uma multa, apenas porque vive numa zona onde não existem meios de venda.

Relativamente à falta de bilheteiras em 33 estações, a CP esclarece que nenhum destes espaços está atualmente encerrado por motivo de obras. A empresa explica que esta realidade se deve à estratégia que tem vindo a seguir nos últimos anos, apostando num “modelo omnicanal, com especial foco na Bilheteira Online e na aplicação móvel”.

Eis a lista de estações Intercidades sem qualquer meio físico de venda, de acordo com a informação disponibilizada no website da CP, e as populações que servem, segundo dados da Pordata:

  • Alcáçovas, no município de Viana do Alentejo que serve 5.592 pessoas;
  • Alvito, município que serve 2.303 pessoas;
  • Âncora-Praia, no município de Caminha que serve 16.604 pessoas;
  • Amoreiras-Odemira, no município de Odemira: 33.866 pessoas;
  • Belmonte-Manteigas, no município de Belmonte que serve 6.265 pessoas;
  • Benespera, no município da Guarda que serve 40.046 pessoas;
  • Caminha, município que serve 16.604 pessoas;
  • Caria, no município de Belmonte, que serve 6.265 pessoas;
  • Carregal do Sal, município que serve 9.261 pessoas;
  • Casa Branca, no município de Sousel que serve 4.403 pessoas;
  • Cuba, município que serve 4.469 pessoas;
  • Ermidas-Sado, no município de Santiago do Cacém que serve 28.294 pessoas;
  • Fátima, no município de Ourém que serve 46.988 pessoas;
  • Fernando Pó, no município de Palmela que serve 74.462 pessoas;
  • Fornos de Algodres, município que serve 4.400 pessoas;
  • Funcheira, no município de Ourique que serve 4.785 pessoas;
  • Grândola, município que serve 14.226 pessoas;
  • Maçainhas, no município de Belmonte que serve 6.265 pessoas;
  • Messines-Alte, no município de Silves que serve 40.309 pessoas;
  • Mortágua, município que serve 9.104 pessoas;
  • Pegões, no município do Montijo que serve 60.612 pessoas;
  • Poceirão, no município de Palmela que serve 74.462 pessoas;
  • Pragal, no município de Almada que serve 183.643 pessoas;
  • Sabugal, município que serve 11.290 pessoas;
  • Santa Clara-Sabóia, no município de Odemira que serve 33.866 pessoas;
  • Santo Tirso, município que serve 67.713 pessoas;
  • São João das Craveiras, no município do Montijo que serve 60.612 pessoas;
  • Vendas Novas, no município de Vendas Novas que serve 11.591 pessoas;
  • Vila Franca das Naves, no município de Trancoso que serve 8.402 pessoas;
  • Vila Nova da Baronia, no município de Alvito que serve 2.303 pessoas;
  • Vila Nova de Cerveira, município que serve 9.425 pessoas;
  • Vila Velha de Ródão, município que serve 3.577 pessoas;
  • Vizela, município que serve 24.688 pessoas.