Raul (C) tem 16 anos e é de Iracema, no Ceará.Marcelo Gondim / CNPq / Divulgação
No Vale do Jaguaribe, interior do Ceará, há pessoas que leem o céu de uma forma única, calcada em sabedoria popular, como nenhum satélite aprendeu. Observam o halo da lua, o florescer do mandacaru, o comportamento da aranha caranguejeira. São chamados de profetas das chuvas, e há gerações ajudam agricultores a decidir quando plantar, quando esperar, ou quando rezar. Sabedoria transmitida de avô para neto, ignorada pelos manuais técnicos e descartada como folclore por quem nunca dependeu de uma safra para comer.
Raul Victor Magalhães Souza, 16 anos, estudante de escola pública em Iracema, cresceu ouvindo o avô Luiz Maia contar histórias desses profetas. Uma delas o marcou: em 2009, ano em que Raul nasceu, os profetas previram as inundações que castigaram a região, antecipando o que os modelos convencionais, feitos para escalas maiores, não conseguiram enxergar. O menino guardou a história para, anos depois, durante o ensino médio, transformá-la em um método brilhantemente inovador.
Com orientação do professor Helyson Lucas Bezerra Braz e parceria com o Laboratório de Farmacologia da UFC, Raul desenvolveu um sistema de inteligência artificial alimentado pelos saberes de seis profetas de cinco municípios. Dez parâmetros organizados em três categorias: fenômenos atmosféricos, fatores botânicos e comportamento animal. Tudo isso cruzado com 43 anos de dados da Funceme e do Inmet. O resultado foi surpreendente: uma ferramenta com 94,5% de precisão nas previsões pluviométricas locais, cinco vezes mais assertiva que os modelos convencionais para aquelas comunidades.
O projeto acaba de vencer a categoria Estudante do Ensino Médio no 31º Prêmio Jovem Cientista. Mas o que ele ensina vai muito além da meteorologia.
Enquanto o debate nacional sobre IA na educação se perde entre o pânico e o deslumbre, Raul fez algo raro: usou a tecnologia para amplificar um saber que o mundo moderno costuma desprezar. Ele não substituiu os profetas por um algoritmo, mas fez o algoritmo aprender com eles. A máquina não veio para calar o avô, e sim para ouvi-lo melhor.
Há uma lição aqui para quem pensa políticas educacionais. A pesquisa do Cetic.br, que vou comentar por aqui, mostra que 70% dos estudantes do ensino médio já usam algum tipo de IA generativa, muitos com medo de “emburrecer”, de perder a criatividade, de virar uma cópia pasteurizada de si mesmos. O medo é legítimo, mas incompleto. Raul é a prova de que o risco não está na ferramenta, ele está no que fazemos com ela. Se a IA for usada apenas para terceirizar o pensamento, ela emburrece mesmo. Mas se for usada para traduzir, conectar, valorizar e ampliar saberes locais, ela pode fazer o exato oposto.
E não foi mágica. Raul chegou até aqui porque um ecossistema funcionou: mãe professora que o incentivou, escola pública que participou do Ceará Científico, bolsa de iniciação científica júnior do CNPq, orientador que apostou, e universidade que abriu as portas. É o que acontece quando política pública encontra talento que sempre existiu, mas que tantas vezes não tem a chance de mostrar sua potência.
No meu livro O Professor Ampliado, defendo que a inteligência artificial só faz sentido na educação se estiver a serviço de algo maior que ela mesma. O projeto de Raul é a melhor tradução dessa ideia que encontrei até hoje. A IA ali não é fim, é uma travessia. É ponte que liga o saber do avô à linguagem do século 21, e o sertão ao sistema. Liga o passado e o futuro sem apagar ou diminuir nenhum dos dois.
Os profetas das chuvas continuam observando o céu e os arredores no Vale do Jaguaribe. Agora, um algoritmo aprende com eles. E um menino de 16 anos, de uma cidade que a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, mostra ao país o que significa usar inteligência artificial com inteligência de verdade.
Quantos Rauls estão nesse exato momento em escolas públicas brasileiras, esperando uma oportunidade que nunca vai chegar?