A gigantesca base foi transformada num verdadeiro palco teatral: no momento alto da cerimónia, uma cortina de seda caiu do tecto, revelando o barco sob o qual centenas de convidados – imprensa, parceiros técnicos e algumas das principais figuras da vela oceânica francesa — estiveram sentados sem o saber. Assim se levantou o véu sobre um dos projetos de design e construção mais secretos dos últimos anos.

Com 32 metros de comprimento e 23 de boca, o Gitana 18 sucede ao Gitana 17 (2017) e inaugura uma nova geração de multicascos totalmente voadores. É o 28.º barco da saga Gitana, que se prepara para celebrar em 2025 o seu 150.º aniversário.

O gabinete de design interno do Team Gitana, em colaboração estreita com Guillaume Verdier, assina um conceito descrito como “arrojado, inovador e completamente disruptivo”. A decoração monumental, visível no casco e no convés, é obra dos artistas franceses Florian e Michaël Quistrebert, com o apoio do Palais de Tokyo numa fusão entre arte contemporânea e engenharia extrema.

Sébastien Sainson, diretor do Centro de Desenvolvimento, é o cérebro por trás do Gitana 18. Como nasce um conceito tão radical?

“É um processo longo. Trabalho com o Guillaume Verdier há muitos anos, e tudo se constrói passo a passo.
As pessoas veem um barco novo e dizem: 50 mil horas de desenvolvimento. Mas, na verdade, são oito ou nove anos de evolução desde o Gitana 17: experimentar, modificar, redesenhar foils, testar ideias, e começar tudo outra vez. E também temos a sorte de estar numa equipa que aceita arriscar. Nem todas aceitariam. Aqui podemos quebrar regras e tentar realmente inovar”.

Team Gitana | Sébastien Sainson

O secretismo que rodeou o desenvolvimento e o tempo que teve de ser mantido surpreendeu muitas pessoas. “Trabalhámos durante tanto tempo neste projeto que há uma espécie de libertação quando chega o momento de o revelar. Queremos ver as primeiras reações, perceber se existe aquele “efeito wow”, confessa Sébastien Sainson.

Mas, continua, este era “o momento certo” para mostrar o barco. “Já tínhamos começado a ouvir rumores de que alguns “amigos” sabiam que estávamos a fazer algo fora da caixa. Mas conseguimos manter o essencial em segurança.
Desde 2017, com o Gitana 17, tínhamos uma pequena vantagem tecnológica que sempre tentámos proteger – e agora tentámos elevá-la outra vez”.

Também o diretor geral do Gitana Team, Cyril Dardashti, confessa ao 24Notícias alívio com o lançamento. “Foram 36 meses a pensar e a construir este barco: 12 meses de estudos, 24 meses de construção. E mesmo agora ainda estamos a finalizar pequenos detalhes nos apêndices. O mais importante é que conseguimos manter a confidencialidade durante todo este tempo – e isso, no nosso meio, é quase impossível. A vela é um mundo pequeno; qualquer fuga de informação daria aos concorrentes meses de avanço. Trabalhámos muito com fornecedores e parceiros para garantir que nada se espalhava. Agora, ao revelar o barco, sei que ninguém fez o que nós fizemos. Isso traz-me um enorme alívio. Mesmo que os outros decidam seguir este caminho, levarão tempo”.

A espionagem é levada a sério no mundo da vela. Cyril Dardashti recorda o lançamento do Gitana 17: “quando o lançámos, em 2017, era o primeiro grande trimaran voador, houve momentos em que percebemos que havia gente a subir ao barco para o observar. Por isso, desta vez fomos mais longe: instalámos câmaras a bordo no primeiro dia de água, para garantir o controlo total sobre quem se aproxima do barco. A confidencialidade faz parte da performance. Se alguém reproduz as tuas ideias antes de colocares o barco na água, estás morto. Por isso, protegemo-nos ao máximo”.

Team Gitana | Cyril Dardashti

Uma revolução técnica: foils em Y, lemes em U e um novo rigging

A arquitectura do Gitana 18 parte de uma premissa clara: voar 100% do tempo possível, mesmo em mar aberto. Para isso, rompe com décadas de tradição nos trimarans oceânicos.

Vamos à terminologia da vela para melhor percebermos a revolução apresentada. Num trimaran, os foils são uma espécie de asa submersa colocada por baixo do barco que, quando este ganha velocidade, gera sustentação e faz o casco elevar-se acima da água.

Os clássicos foils em L dão, neste Gitana 18, lugar a novos foils em Y, verdadeiros gigantes com mais de cinco metros de envergadura, montados em braços oscilantes capazes de ajustar “rake”, ângulo e altura. Cada “perna” do Y incorpora flaps independentes, inspirados nos AC75 da America’s Cup, permitindo um controlo mais fino da altitude, do rolamento e da estabilidade longitudinal. Guillaume Verdier explica que esta geometria distribui melhor as cargas e reduz drasticamente a torção – um dos principais limites estruturais da geração anterior.

Sob o casco central, o trimaran integra ainda uma misteriosa asa metálica de três metros, cujo material e função exata o Team Gitana prefere manter em segredo. Tudo indica que desempenha um papel crucial na estabilização do casco em fases críticas como descolagem e aterragem.

Se os foils são um salto quântico, os lemes em U (ou A invertido) são uma outra revolução. Em vez de depender de uma única pala rotativa – que a mais de 45 nós sofre deformações superiores a 10 toneladas – o Gitana 18 utiliza duas palas estruturais fixas ligadas no topo, garantindo rigidez torsional praticamente absoluta. A direcção é assegurada por flaps, e não pela rotação da pala, eliminando os pontos de falha típicos dos Ultim anteriores.

O rigging (conjunto de cabos e estruturas que seguram o mastro e permitem controlar as velas de um barco à vela) é outro elemento pioneiro. O novo mastro de 38 metros, construído pela Southern Spars, integra vaus ajustáveis e uma flexão programada que permite controlar a potência da vela grande em tempo real – especialmente útil em transições entre deslocamento, descolagem e voo, ou em condições de borrasca. A equipa sublinha que esta solução, nesta escala, é inédita no mundo.

A utilização de IA é um tema inevitável em qualquer setor e a vela não é diferente. “Onde a IA nos ajuda muito é na gestão de dados. Este barco tem mais de 800 sensores. São milhares de milhões de dados por hora. A IA organiza, classifica, deteta padrões. Aí sim, dá-nos uma vantagem enorme comparada com o Gitana 17”, afirma o diretor de desenvolvimento.

Vela | Gitana 18

Um conceito híbrido, modular e totalmente voador

Ao contrário do seu antecessor, o Gitana 18 foi concebido para alternar livremente entre modo híbrido e voo integral, adaptando-se a qualquer ângulo de vento ou estado do mar. É descrito como uma “criatura polimórfica”, com múltiplos elementos móveis que podem ser instalados, ajustados ou recolhidos consoante as necessidades.

De acordo com os ensaios realizados em simulador — uma ferramenta que permitiu testar 60 a 80 versões de foils sem as ter de fabricar – o Gitana 18 deverá ser 10 a 15% mais rápido do que o Gitana 17. O objectivo é claro: voar alto, sem tocar nas ondas, com médias próximas dos 40 nós e picos acima dos 55.

“Com este novo barco, queremos aproximar-nos do voo perfeito. Voar muito alto, mesmo com vaga de três metros, e manter velocidades médias na ordem dos 40 nós”, explica Charles Caudrelier, skipper do Maxi Edmond de Rothschild.

Quando começámos a explorar a ideia dos foils, eu tinha visto os barcos da America’s Cup e falei com o Guillaume Verdier. Perguntei-lhe se podíamos fazer voar o Gitana 11 ou o Gitana 15. Ele disse-me: “O 11 parte-se ao meio; o MOD70 talvez”, conta o diretor geral da equipa.

Levaram a ideia a Ariane e Benjamin de Rothschild a quem disseram: “Podemos ter algo grande aqui”. A partir daí, começou tudo.

Vela | Gitana 18

Um projecto industrial sem precedentes

O desenvolvimento arrancou em janeiro de 2024 e mobilizou mais de 200 especialistas, totalizando 200.000 horas de construção e 50.000 horas de estudos. Cerca de 80% da plataforma foi fabricada em autoclave, num esforço conjunto entre a CDK Technologies (plataforma), C3 Technologies (lemes), Re Fraschini (foils), Southern Spars (mastro e retranca) e North Sails (velas), entre outros.

A experiência acumulada pelo Team Gitana ao longo de 200.000 milhas náuticas no Gitana 17 — incluindo vitórias na Transat Jacques Vabre, Route du Rhum e Arkea Ultim Challenge — serviu de base a quase todas as decisões estruturais e hidrodinâmicas da nova embarcação.

“Na minha família sempre houve uma paixão pela competição, pelo desempenho e pela disrupção tecnológica. Trata-se de assumir riscos, avaliá-los e geri-los. Esta filosofia está presente em cada detalhe deste projecto”, afirmou Ariane de Rothschild, proprietária da equipa, que assistiu ao lançamento acompanhada pelas filhas — representadas simbolicamente na decoração do casco.

O que se segue

Após o lançamento, o Gitana 18 entra agora numa fase intensiva de testes e afinações a navegar. A estreia em competição está prevista para o próximo ano, na Route du Rhum, onde se espera que este novo trimaran estabeleça uma nova referência para os barcos voadores de oceano.

Com o Gitana 18, o Team Gitana não criou apenas um Ultim mais rápido: redefiniram o que um trimaran oceânico pode ser. O objetivo deixa de ser alternar entre deslocamento e voo, passa a ser voar sempre. E voar mais alto, mais rápido e mais estável do que nunca.

Como imagina o Gitana 20, perguntámos a Sébastien Sainson. “Talvez já nem seja comigo – mesmo sendo jovem. Primeiro temos de pensar no Gitana 19. Mas se olhar para trás, há dez anos não voávamos. Em 2017, com o Gitana 17, já achávamos que tínhamos chegado ao limite. Hoje vemos que estávamos no início. Acredito que estamos apenas no começo da era do voo. Daqui a dez anos vamos olhar para este barco e pensar: “Como é possível que isto era considerado moderno?”.