A nova Estratégia de Segurança Nacional (NSS) dos EUA, recentemente publicada, requer uma cuidada análise porquanto se constitui num documento muitíssimo polémico, portador de alterações radicais e com influência direta no espaço geopolítico europeu. Ao primeiro contacto com esta nova e inesperada realidade, concebida e mantida em segredo por algum tempo, gerou-se uma visível onda de espanto, seguida de um verdadeiro cataclismo junto das principais capitais europeias. Choque é a palavra certa, imediatamente secundado por uma sensação de urgência na reação. Este documento materializa, efetivamente, um corte radical com a tradicional postura política externa seguida pelos EUA ao longo das oito últimas décadas. Na Europa fica a sensação de um verdadeiro amargo de boca. Algo inesperado e até mesmo hostil se não quisermos poupar adjetivos. Há, inclusivamente, quem classifique o documento como uma perigosa deriva ideológica de inspiração ultranacionalista; e há quem, menos preocupado, o considere apenas um exercício serôdio de um certo “neorrealismo” geoestratégico.
Compreender a essência deste documento-âncora da nova política externa da Casa Branca revela manter, desde logo, a perceção de que ele se articula, basicamente, à volta de três vetores distintos concorrentes para uma mesma finalidade. Um primeiro, representativo de uma diagnose do “estado da arte” no que respeita à ordem internacional. Um segundo, ancorado na qualidade de simples ferramenta de poder político. Finalmente, um terceiro e não menos importante, aí concebido como uma verdadeira alavanca promotora de mudanças de caráter ideológico. É justamente aqui, nesta invulgar justaposição, entre os fatores intrínsecos de uma análise geoestratégica, de uma visível agenda político-partidária e de uma escancarada narrativa identitária, no qual este importante documento se torna tão intrinsecamente controverso e tão difícil de enquadrar na costumeira tradição da política externa norte-americana.
Do meu ponto de vista, um dos aspetos mais marcantes desta nova NSS é a forma como os EUA passam a encarar a Europa. Etiquetando-a não como a velha tradicional aliada, mas como um novo palco de competição política. O documento culpa os governos europeus de serem responsáveis por “subverter processos democráticos” e de se constituírem como um obstáculo na procura da paz com a Federação Russa. O que é caricato. Ao contrário de anteriores documentos que colocavam a tónica nos valores partilhados e na responsabilidade coletiva, esta “nouvelle” quão inusitada estratégia adota uma retórica que encontra acolhimento nos mais inflamados discursos dos novos populismos europeus. Numa nítida intromissão nos assuntos internos dos Estados Europeus, o texto consegue ir ainda mais longe ao tecer rasgados louvores à ascensão de partidos de raiz patriótica, dando crédito e apoio político-ideológico a forças claramente revisionistas no pior sentido como a “AfD” (Alternative für Deutschland) germânica, o “Rassemblement National” francês (RN) – identificado como de extrema direita nacionalista – ou o “Reform UK”, o partido britânico, igualmente populista de direita, fundado por Nigel Farage e Catherine Blaiklock. Não há memória de um documento oficial dos EUA que tenha perfilhado o propósito de interferir tão descaradamente nos assuntos de política interna europeia — numa intromissão tão absolutamente inqualificável.
Como, muito bem, referiu Ursula von der Leyen em recentes declarações ao Politico, o executivo norte-americano, não deveria imiscuir-se em assuntos internos da democracia europeia. “Não nos cabe, quando se trata de eleições, decidir quem será o líder de um país, mas sim ao povo desse país… esse é o espaço de soberania dos eleitores, e isso é algo que deve ser protegido”. “Ninguém mais deve interferir, sem qualquer dúvida”, acrescentou ainda a Presidente da Comissão Europeia em resposta a uma pergunta sobre a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA que causou visível alvoroço no espaço europeu.
Sejamos claros. Para Washington, uma UE cada vez mais supranacional – intervindo nas questões climáticas, tecnológicas, fiscais ou mesmo na regulação digital – apresenta-se como um ator com potencial para ameaçar a liberdade de ação estratégica norte-americana. Nunca devemos deixar de ter em conta que a UE, em si mesma, é a segunda maior economia a nível mundial. Patrocinar movimentos de cariz nacionalista afigura-se como um método de contenção estratégico da crescente influência de Bruxelas. Uma ação de tipo indireto, de natureza vincadamente ideológica, considerada pela UE como inaceitável e politicamente nefasta para a sua liberdade e democracia. Nada de muito diferente daquilo que fazia a então URSS quando patrocinava globalmente a vertente ideológica do comunismo internacionalista, como forma de unir os povos do mundo e alcançar a almejada hegemonia de poder.
Mas há mais… A forma benévola como a Federação Russa é aqui retratada por Washington constitui mais um traço distintivo — e altamente preocupante — deste novo documento formalmente subscrito por Donald Trump. Nele, o Kremlin nunca é qualificado como uma ameaça militar, o que menoriza os riscos do seu expansionismo e sugere que o regresso de Moscovo à ordem europeia e mundial é algo desejável e muito bem-vindo.
A notada ausência de compromissos inequívocos com o Artigo 5.º do Tratado de Washington e a firme resistência ao futuro alargamento da Aliança deixam a Ucrânia e muitos outros Estados que aspiram à integração na NATO numa clara posição de grande e cada vez maior fragilidade. O objetivo implícito parece confluir para a desconstrução progressiva da arquitetura de segurança e defesa euro-atlântica laboriosamente construída no final da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, estamos a deparar-nos com um sinal de retirada estratégica dos EUA da Europa. Algo que, desde a reeleição do presidente norte-americano, tínhamos a noção que poderia acontecer. É agora chegado o momento de nos bastarmos a nós próprios e de sermos capazes de nos defender autonomamente. Esta, é a hora de assumirmos a inteira responsabilidade pela nossa própria segurança — esse é realmente o caminho certo.
Ao invés dos anteriores documentos de Estratégia de Segurança Nacional, este não é apenas um mero documento estratégico norte-americano. Na realidade, é bem mais do que isso, assumindo-se como um incontornável manifesto de caráter ideológico. Alusões como “declínio civilizacional europeu”, “substituição demográfica” ou “recuperar a identidade ocidental” são transfusões diretas do discurso da extrema-direita Republicana. A finalidade, essa, é clara. Para além de estabelecer as principais diretrizes e prioridades da política externa dos EUA é também agora influenciar as opções de política interna dos seus tradicionais aliados. O que não pode senão ser tido como absurdo: mesmo os analistas que favorecem um recuo estratégico norte-americano admitem que legitimar este tipo de narrativas, associadas às teorias do “Grand Replacement” — uma Grande Substituição em português — de inspiração nacionalista branca e de extrema-direita não é o melhor caminho. Uma viragem que ultrapassa, em muito, a velha “Realpolitik”, convergindo para a esfera própria de uma muitíssimo dura radicalização ideológica.
Não vale a pena continuar a fingir, iludindo-nos. A Europa está mesmo em risco de vir a enfrentar uma potencial guerra de alta intensidade no seu espaço geográfico, com uma Rússia apostada em proceder a alterações de fronteiras através da força. E, como se isso não bastasse, agora vemo-nos confrontados com um aliado histórico que já não pretende continuar a desempenhar o papel de maior garante de uma segurança europeia em risco iminente. As implicações são profundas. Se os EUA não assegurarem a contenção da Federação Russa, então a Europa deve fazê-lo e em todas as vertentes. Se a guerra na Ucrânia pôs a nu a inquestionável vulnerabilidade energética europeia da Rússia, a NSS demonstra-nos que depender dos EUA em matéria de defesa, tecnologia ou economia suscita um enorme risco futuro. A Europa precisa com toda a urgência de lograr uma clara autonomia energética, de uma capacidade de produção militar própria e de um firme controlo das cadeias de valor consideradas críticas. Joga-se atualmente na Ucrânia a credibilidade europeia. Se a Europa falhar na defesa deste país, acaba por confirmar plenamente o que a NSS sugere. Que a Europa é um ator completamente incapaz de prover as suas próprias necessidades de segurança.
A atual NSS não reproduz apenas uma mudança na política externa dos EUA. Constitui, em si mesma, um verdadeiro terramoto estratégico para a Europa. Se esta responder com unidade, investimento sério e visão estratégica, poderá finalmente emergir como uma entidade geopolítica autónoma, respeitada e capaz de se defender a si própria, deixando de ser uma potência “herbívora”.
O futuro dirá se este momento vai ficar gravado na História como o “grande despertar” europeu. Ou, ao invés, materializando um passo decisivo para o início do seu declínio estratégico e civilizacional — dando, neste último caso — razão a um Donald Trump que nos despreza. Francamente, esperemos que estejamos à altura de nos assumirmos em pleno vigor. Não o fazermos pode ter consequências drásticas, tanto para a Europa como para a Democracia mundial…
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