Em Berlim há um prédio de betão de Siza com Bonjour Tristesse escrito no topo. A mesma fachada, anos depois, ganhou um segundo aviso, mais urgente que poético: BITTE LEBN, “por favor vive”. Entre estas duas frases, como entre os lados menos turísticos da trilogia de Berlim de David Bowie, cabe uma geração portuguesa que fez as malas na grande crise da troika, deixou recibos verdes e chaves de casa em cima da mesa e foi aprender para Berlim como se respira noutra língua. Esta é a terceira e última reportagem de uma trilogia que segue algumas dessas vidas adiadas, divididas entre o país que empurrou e a cidade que acolheu: trabalho qualificado pago como se fosse favor, invernos que não acabam, línguas que se aprendem à pressa, regressos que tanto salvam como doem. Mais do que histórias de emigração, são três cartas escritas de Berlim para um lugar chamado Portugal, a tentar dizer, com todas as sílabas: adeus, tristeza
ADEUS, TRISTEZA – TRILOGIA
A dada altura ela estava no coração da Europa, em Bruxelas, e teve de regressar a Portugal, não gostou nada disso: a ideia de ficar cá tornou-se sufocante e por isso foi de novo – Bruxelas outra vez, Reino Unido a seguir, finalmente Berlim. E que surpresa: descobriu na capital da Alemanha uma cidade “menos elitista”, “há um bocado mais de ostentação em Lisboa do que em Berlim”. Só que: “No início nem me esforçava por conhecer muitos portugueses porque não os queria ver, à medida que o tempo vai passando é ao contrário, preciso dessa conexão”. E então Sofia regressou a Portugal, João é que não: tem 75.000 razões para não o fazer, “até porque em Berlim podes ser jovem para sempre”
“Às vezes sinto necessidade de seguir em frente, então preparo uma mala e sigo”
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INÍCIO DE REPORTAGEM
Sofia está dentro de casa, abre a porta, convida a entrar: sorriso aberto, rosto fresco, 34 anos que nem sequer parecem ser 30 – o cabelo curto e a roupa primaveril tiram-lhe cinco anos. Pelo menos cinco.
Mochi está atrás dela, Mochi é um gato com dois grandes olhos azuis no meio de uma sala bem decorada, uma sala que replica dentro de portas aquilo que acontece fora delas, é “uma mistura de coisas antigas com coisas novas”, diz Sofia sobre a sua sala mas também sobre o seu bairro – Alvalade, em Lisboa, que é a coisa mais ou menos nova na vida de Sofia depois da coisa-vida antiga em Berlim.
Em Alvalade já não há fachadas gigantes em betão nem quarteirões soviéticos com grafitis e cartazes colados: aqui os prédios são baixos, têm tons rosa ou amarelo-ovo, as portas exibem pedra trabalhada e os pequenos varandins ostentam floreiras orgulhosas. Os vizinhos reconhecem-se da janela e ouvem-se os sinos da igreja e a passagem dos aviões. Portugal.
Sofia, Sofia Gonçalves, deixou Berlim há dois anos porque queria “ter filhos perto da família”. Trouxe o namorado, espanhol, que também ficou mais perto de casa. O primeiro filho de ambos nasceu pouco tempo depois na Lisboa para onde Sofia veio da Guarda quando tinha 18 anos: escolheu Economia na Universidade NOVA, onde “toda a gente fazia Erasmus”. “É considerado parte normal da tua licenciatura ganhar experiência no estrangeiro porque, para começar, na NOVA tu já tens imensas aulas em inglês, então logo aí tu vês que as pessoas que estudam lá já têm um nível de inglês bastante bom que permite viver no estrangeiro. Não sei, nem sequer pensei duas vezes. Parecia uma coisa bastante normal.” Foi.
2011, Sofia chega a Bruxelas. Seis meses no coração da Europa, a meio da licenciatura, levam-na a concluir que “a nacionalidade não era assim tão importante e voltar a Portugal não era assim tão apelativo”. E depois: “Comecei a namorar com um alemão, a ter amizades de outros sítios e a sentir-me mais europeia”. Entretanto tem de regressar a Lisboa, “não gostei nada de ter de fazer isso”, mas há que acabar o curso. As cadeiras voltam a ser teóricas e “supermais restritas”, em anfiteatros cheios onde nenhum professor sabe que Sofia se chamava dessa maneira – é só uma cara ali. As pessoas não são números, as pessoas têm nomes. Sofia fica com a sensação de estar mais uma vez a olhar o mundo à distância a partir da janela que é Lisboa.
A partir daí, a perspetiva de ficar “só” em Portugal torna-se sufocante. Termina um mestrado em Lisboa em 2014, regressa a Bruxelas para um estágio de cinco meses no Comité Económico e Social Europeu (CESE) e Berlim surge em 2015 – com uma curta experiência no Reino Unido pelo meio. Descobre na capital da Alemanha uma cidade “menos elitista” que a capital portuguesa, pelo menos na forma como se ocupa o tempo livre.
“É claro que lá é importante ter algum dinheiro para sobreviver, mas as atividades que tu fazes – por exemplo, ir a um parque beber um copo ou ir a um bar – não dependem assim tanto do teu tipo de posição numa empresa.” Em Lisboa, pelo contrário, “as atividades que tu fazes no teu tempo livre dependem mais do teu nível de rendimento, há um bocado mais de ostentação do que em Berlim”.
Há hábitos dos quais sente falta todos os dias: no verão, “toda a gente em Berlim sai do trabalho e vai para um parque, há mil parques por onde escolher”, ninguém fica a trabalhar até às 19:00 porque pelas 17:00 ou 18:00 já se estende uma manta na relva e uma cerveja na mão, “tenho imensas saudades de ir para um parque num sítio aleatório”. Em Lisboa as pessoas saem mais tarde e “não há essa cultura de ir para o parque”, no dia anterior Sofia tinha ido ao Jardim da Estrela e o relvado estava cheio mas “olhas à volta e ninguém é português”. Em Berlim ou Londres cada raio de sol é um evento, em Portugal o sol é um dado adquirido.
Passa a visitar Portugal uma vez por ano de 2015 em diante, prefere usar os dias de férias para viajar para destinos desconhecidos, afinal Sofia fala cinco línguas, tem amigos espalhados por cidades de muitas fronteiras, quando perguntam a Sofia “de onde és?” Sofia responde “sou da Europa”. Regressa a Portugal no verão de 2023 para ter os filhos que decidiu que nascessem cá mas nota que há hábitos, ritmos e prioridades que já não são inteiramente os mesmos, Portugal mudou – as pessoas não são números mas o número de anos muda as pessoas.
Sofia continua a sentir aquela necessidade de preparar a mala e de seguir em frente para um sítio qualquer, ir ou ficar é uma equação geográfica que atormenta a matemática dos viajantes compulsivos, enquanto isso no quarto ao lado está um berço que assinala as raízes e às vezes é preciso ter algo que nos lembre a que sítio pertencemos, “no início nem me esforçava por conhecer muitos portugueses porque não os queria ver, à medida que o tempo vai passando é ao contrário, preciso dessa conexão”. Portanto: no fim sentimo-nos todos portugueses, não é, Sofia?, Sofia hesita, por fim Sofia responde – com o mantra: “Sinto-me europeia”.
“Demasiada gente nova, demasiado dinheiro para ser verdade”
Carcavelos, fim de tarde, o céu está baço, o mar está no sítio de sempre: João Goulão, 32 anos, corre para a água de prancha no braço, fato de surf preto no corpo, caracóis castanhos no vento.
Na areia, Raj Vijayan, 34 anos: amigo de João, férias de 10 dias em Portugal, tira fotografias ao horizonte. É de Chennai, Índia, vive em Berlim há cerca de cinco anos, conheceu João há quatro, em contexto profissional. Foram ao Porto, a Aveiro, a Lagos, Lisboa é o destino final.
“Carcavelos é a praia de todos, fica a 15 minutos da cidade”, João regressa do mar, sacode o sal do cabelo, pousa a prancha e despe o fato até à cintura. “Tenho de ver a praia sempre que estou de visita, mesmo que esteja a chover – só para me lembrar.” Depois: a comida da avó ou da mãe, ou até a do restaurante, e ainda: “só a luz, só a luz na rua é automaticamente um antidepressivo”. Portugal.
João Goulão levou o amigo Raj Vijayan a conhecer o seu país, de norte a sul
João visita Portugal “pelo menos quatro vezes por ano”, quase sempre por períodos de duas semanas: vem buscar combustível à energia que só encontra em Lisboa, até porque descobriu que “se podes olhar vê, se podes ver repara” acontece nos livros de Saramago e quando se começa a viver fora do país, “comecei a apreciar coisas que antes nem sequer apreciava” em Portugal. Ah, Portugal.
Cresceu entre Lisboa e Castelo Branco, deixou a casa dos pais aos 18 e foi estudar marketing. Em vez de seguir o caminho clássico depois do canudo – trabalhar, esperar, subir devagar – decide guiou-se por uma máxima que apurou com o tempo, “o conforto é inimigo da descoberta”. Aos 23 anos foi descobrir para a Tailândia, onde se voluntariou para dar aulas de inglês durante quatro meses.
Já no mestrado passou por Istambul em Erasmus, ficou por lá quase um ano, regressou a Portugal para se tentar dedicar à consultoria e finanças, “não posso dizer que não tentei porque tentei e tive algum sucesso”. Mas percebeu que a vida podia organizar-se à volta de uma combinação de trabalho remoto e viagens desde que houvesse um sítio onde pousar com regularidade, esse lugar tornou-se Berlim – quase por acidente.
A oportunidade apareceu numa conferência, pessoas que trabalhavam na área de dados e tecnologia mostraram o caminho, mais tarde surgiu uma vaga para a qual se candidatou e o contrato que o levou para a capital alemã em 2020. “A mudança foi estruturada, não planeada.”
João nunca esteve verdadeiramente “sem chão”, uma parte significativa dos seus círculos já vivia ou viria a viver na cidade – não apenas portugueses mas amizades construídas noutras paragens que reapareceram ali, como se a capital alemã fosse um reencontro marcado sem ninguém o ter anunciado. “Realmente Berlim parece que é um íman, atrai pessoas que pensam da mesma maneira.”
O sol já se pôs. Numa esplanada de madeira, sentados de frente para o mar, João e Raj levantam os copos de cerveja. Brinde. Saúde.
João é analista financeiro numa empresa alemã. O ordenado é pago em “euros germânicos”’: 75.000€ por ano, na mesma posição em Portugal seria “à volta de 25.000€”. Consegue pagar em Berlim uma renda de 1500€/1600€ mês, tem margem para ter duas vidas: a que leva em Berlim, com rendimentos estáveis, e estes regressos regulares a Portugal, ah Portugal. De vez em quando pode até trabalhar a partir de cá, ah as empresas alemãs, “considero-me uma pessoa privilegiada por poder fazer isso”. Quando o inverno agride Berlim, João tem uma regra, “uma viagem longa, é tradição”: “Desde os últimos anos, a seguir ao meu aniversário, em novembro, Berlim fica impossível, é superdeprimente, tens três horas de sol – quando tens sol”.
Costuma ir para a Ásia ou para a América do Sul, não só pelo clima mas pelo surf, “trato do que tenho a tratar e vou embora durante uns tempos para um sítio mais quente, faz-me sentir bem”, depois João explica porque passa o resto dos meses em Berlim: da maneira que a descreve parece que fala sobre um velho amigo cujos defeitos conhece de cor e subitamente: “A escolha de Berlim é um bocado existencial, primeiro de tudo porque é uma cidade onde podes ser jovem para sempre, as pessoas não te perguntam o que é que fazes, que idade é que tens e de onde é que vens. Ninguém faz comparações sobre aquilo que és na vida, cada um está no seu próprio ritmo a fazer a sua própria cena – desde que não interfiras com a minha liberdade eu não interfiro com a tua. É essa a razão”. Ri-se, conclui o raciocínio: “Mesmo face ao resto da Alemanha, Berlim devia ser considerada um país à parte”. Ou como dizem os pais de João: “Berlim é demasiada gente nova, demasiado dinheiro e demasiado tempo livre para ser verdade”. Por isso deixou Portugal para move on para Berlim, mas ainda assim: “Se me perguntares a longo prazo onde é que eu vou viver, eu digo: vai ser em Portugal”.