Morto aos cem anos, o arquiteto Carlos Alberto Cerqueira Lemos foi historiador e também escritor. Teve uma carreira sólida na literatura, com mais de 20 obras lançadas.

Uma delas foi “Viagem pela Carne”, publicada em 2005. No livro, ele investiga seus antepassados na busca por pistas que o ajudam a descobrir se seus dons artísticos haviam sido passados de uma geração para a outra.

Relembre resenha do livro feita por Otavio Frias Filho, à época diretor de Redação da Folha.

Memórias trazem ecos da casa paulista

Carlos Lemos é considerado o principal historiador da casa paulista, dos primeiros bandeirantes à explosão imobiliária da capital no começo dos anos 1950. Chefiou o escritório paulistano de Oscar Niemeyer, convidado nessa época a trabalhar na cidade por Octavio Frias de Oliveira, até 1957, quando as atenções do arquiteto carioca se voltaram para a futura Brasília.

Pesquisador respeitado, professor por cinco décadas, pintor eventual e cozinheiro de mão cheia, Carlos Lemos lança agora uma espécie de autobiografia.

Não é bem um livro de memórias, avisa o autor. Obcecado quando estudante pelos próprios ancestrais, ele fez então minuciosa pesquisa em velhos arquivos que agora, tantos anos depois, serve de base ao livro. O arquiteto alega buscar, no entrelaçamento das famílias e no desenrolar das gerações, certos pendores genéticos aptos a esclarecer sua própria vida como desenhista, como intelectual com veia artística, até como canhoto.

Mas o resultado é outro. Vemos, no desfile difuso dos fantasmas evocados, a luta pela sobrevivência em tempos primitivos, os esforços de ascensão social em que cada geração parece montar nos ombros da anterior, assim como os reveses da má sorte, em geral correspondentes ao colapso de um sub-ciclo econômico qualquer. O autor está na extremidade de um ângulo propício a esse panorama, dada a origem de seus “quatro costados”.

De um lado, seus antecessores foram mulatos do vale do Paraíba no declínio da mineração além da Mantiqueira, quando as vilas do garimpo eram abastecidas de víveres pelo comércio de cidades como Guaratinguetá. Foram salvos pelo próspero ciclo seguinte, o do café.

De outro, Lemos descende de portugueses instalados no sul de Minas, que seguiram o gado rumo ao oeste e assim desbravaram o norte paulista. De um terceiro, o autor tem raízes na região caiçara de Iguape, a mais pobre do Estado. O último costado, o dos Cerqueira, converteu-se à fé presbiteriana no fim do século 19 e esteve na origem da fundação do Mackenzie, na capital.

O passado se concilia e se justifica com a narrativa da vida do autor, que ocupa a segunda metade do livro, da qual constam também croquis, desenhos e reproduções de algumas de suas telas.

Lemos relata as polêmicas arquitetônicas da época de estudante, anos 40, que opunham o estilo eclético (financiado por imigrantes pouco ilustrados, saudosos da terra natal) à sua reação neocolonial (uma releitura “aristocrática” da casa bandeirante). Nas escolas, o pensamento acadêmico tentava barrar a influência dos modernistas.

A hegemonia destes se consolidou nos anos 50 e 60, com o prestígio de Niemeyer e de seu contraponto paulista, Vilanova Artigas: curvas X colunas. Carlos Lemos admira o criador de Brasília, mas nunca se tornou discípulo.

Foi na velha região de Ibiúna, próxima à capital, que ele teve sua iluminação, por volta de 1963. Ao conversar com um mestre de obras sobre a casa-refúgio que faria lá, o autor atinou que ela poderia/deveria ecoar o passado de tantas moradas paulistas que ele estudara e de onde proveio.

Lemos se tornou um dos artífices de uma arquitetura alternativa, de “oposição”, que floresceu em casas de intelectuais e assemelhados nos anos 60 e 70. Verde, madeira, vidro, lajotas, janelões, fogão à lenha e telhados de caipira.

A cozinha no centro da casa. Tratava-se de encontrar soluções baratas e de bom gosto que fossem ressonâncias da história mameluca. Reunir tradição popular e modernismo culto.

Esse projeto -e tudo o que ele implicava em termos políticos e ambientais- foi massacrado pela brutalidade de nosso desenvolvimento desordenado. A vida do autor, agora espelhada no livro, é testemunho de um passado que poderia ter melhorado o presente.