Rússia acompanha com atenção o que se passa e até já avisou que a situação corrre o risco de ficar “fora de controlo”

Quando as autoridades eleitorais da Bósnia destituíram Milorad Dodik do seu cargo de presidente do minúsculo Estado de maioria sérvia Republika Srpska, também conhecido como República Sérvia, ele fez o seu melhor para parecer imperturbável. Em vez disso, o nacionalista, que se divide e nega o genocídio, lançou o seu próprio desafio às instituições que tentaram derrubá-lo.

“E se eu recusar?”, perguntou.

A Bósnia pode estar prestes a descobrir.

Dodik, um dos principais aliados do presidente da Rússia, Vladimir Putin, nos Balcãs, tem estado no poder na Bósnia desde 2006, a mexer nas costuras da manta de retalhos do Estado multiétnico do país. Esse Estado foi criado em 1995 pelos Acordos de Paz de Dayton, que puseram fim à violência que se espalhou pela antiga Jugoslávia quando esta se desmoronou na década de 1990, impulsionada pelo impulso frenético do então presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, para criar uma “Grande Sérvia”.

Embora Dayton tenha posto termo à guerra da Bósnia, deixou o país dividido segundo linhas étnicas. A Bósnia é constituída por duas entidades: a Federação, onde os bósnios (muçulmanos da Bósnia) partilham o poder com os croatas, e a Republika Srpska, dominada pelos sérvios. Acima de cada uma delas, há um governo central, na sua maioria destituído de poder, e um “Alto Representante” estrangeiro, a quem são conferidos poderes de longo alcance para implementar o acordo e manter a paz.

Dodik – que durante anos ameaçou separar-se da Bósnia e “reunificar-se” com a Sérvia – foi condenado em fevereiro por desafiar as ordens de Christian Schmidt, o atual Alto Representante. Na semana passada, um tribunal de recurso confirmou a sua sentença de um ano de prisão e a proibição de exercer funções durante seis anos. Apesar de Dodik ter evitado a prisão através do pagamento de uma multa, a comissão eleitoral da Bósnia optou, esta quarta-feira, por aplicar a lei que destitui automaticamente um funcionário se for condenado a mais de seis meses de prisão.

Depois de duas décadas de fúria contra as instituições estatais da Bósnia, encorajado pelo seu elenco de aliados iliberais e pela falta de reação da União Europeia, muitos na Bósnia ficaram estupefactos com a rapidez com que as autoridades aplicaram a decisão do tribunal.

Vladimir Putin e Milorad Dodik (Mikhail Tereshchenko/Pool Sputnik Kremlin via AP)

Vladimir Putin e Milorad Dodik (Mikhail Tereshchenko/Pool Sputnik Kremlin via AP)

“Desde 2006, Dodik tem feito o seu melhor para enfraquecer as instituições da Bósnia e esvaziar o Estado por dentro”, diz à CNN Arminka Helić, que fugiu das guerras na década de 1990 e agora tem assento na Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha. “Acho que ele não esperava, depois de todas as suas ameaças e todo o barulho, que alguém ousasse questionar a sua posição.”

A questão agora é saber se Dodik se cala ou luta, aponta.

Para já, a segunda hipótese parece mais provável. Dodik ameaçou impedir a realização de novas eleições – se necessário, pela força – e pediu apoio aos seus aliados em Belgrado, Moscovo e Budapeste.

“A rendição não é uma opção”, disse Dodik.

Moscovo, que há muito tempo conta com Dodik para fomentar problemas nos Balcãs, avisou que a região poderia ficar “fora de controlo”. A sua embaixada na Bósnia avisou que o país estava a cometer um “erro histórico”.

“Será que a sua reputação de ‘barril de pólvora europeu’ foi esquecida?”, perguntou.

Abordagens a Trump

Quando Dodik tomou o poder pela primeira vez, os diplomatas ocidentais ficaram encantados. Após o banho de sangue dos anos 90, Dodik parecia anunciar uma era de estabilidade. Para Madeleine Albright, então secretária de Estado dos EUA, Dodik era uma “lufada de ar fresco”.

Mas, desde então, Dodik voltou a assumir-se como um nacionalista impenitente, negando o genocídio de oito mil bósnios em Srebrenica, em 1995, o massacre mais famoso da guerra, e encontrando-se frequentemente com Putin em Moscovo.

Durante anos, Dodik insurgiu-se contra as estruturas do acordo de Dayton, dificultando o funcionamento das instituições bósnias na sua entidade e ameaçando, em última análise, separar Srpska do resto do país.

Líderes de seis nações observam os presidentes da Sérvia, Croácia e Bósnia assinarem os Acordos de Paz de Dayton no Palácio do Eliseu, em França, em dezembro de 1995 (Michel Lipchitz/AP)

Líderes de seis nações observam os presidentes da Sérvia, Croácia e Bósnia assinarem os Acordos de Paz de Dayton no Palácio do Eliseu, em França, em dezembro de 1995 (Michel Lipchitz/AP)

Tornou-se um némesis de Christian Schmidt, o atual Alto Representante e antigo ministro do governo alemão da então chanceler Angela Merkel. Dodik vê Schmidt como um albatroz à volta do pescoço da Srpska, alegando que os seus poderes atropelam a vontade dos eleitores sérvios.

Desde a condenação de Dodik, os seus aliados europeus começaram a adotar a sua causa. Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro, rejeitou o processo contra Dodik como uma tentativa do Alto Representante estrangeiro “de o afastar por se opor à sua agenda de elite globalista”.

Marko Djurić, ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, também disse que Schmidt estava a submeter Dodik a “uma caça às bruxas política”, usando “métodos antidemocráticos” para frustrar “a vontade do povo”.

Concentrar as suas queixas contra Schmidt é uma “estratégia inteligente”, refere Adnan Ćerimagić, analista sénior da Iniciativa Europeia de Estabilidade, à CNN.

Mesmo os defensores das instituições da Bósnia acham difícil justificar os poderes concedidos a Schmidt. Os Altos Representantes são nomeados por um conselho composto por várias nações ocidentais e têm o poder de impor a anulação de leis, bem como de nomear e demitir funcionários. Paddy Ashdown, um antigo deputado britânico que já desempenhou o cargo de Alto Representante, disse que o papel lhe dava “poderes que deveriam fazer corar qualquer liberal”.

“Nenhuma outra pessoa na Europa hoje, pelo menos na parte democrática, tem esse poder: simplesmente acordar, aceder ao seu site e publicar novas leis, decisões e demitir pessoas”, lembra Ćerimagić.

Em busca de mais apoio diplomático de peso, Dodik começou a intensificar suas aberturas para a administração Trump, alegando que ele, como o presidente dos EUA, foi submetido a “lawfare” por um burocrata não eleito.

Ecoando as críticas feitas pelo vice-presidente JD Vance no seu infame discurso em Munique no início deste ano, Dodik afirmou que, ao tentar removê-lo do cargo, as autoridades europeias estão a ignorar a vontade do povo.

O aliado de Putin também se tentou pintar como um líder cristão vitimado num país de maioria muçulmana, frisa Helić.

“Ele quer pintar-se como uma alma gémea sentada lá fora numa pequena entidade nos Balcãs, que não está apenas a passar pelas mesmas provações e tribulações pelas quais o presidente Trump passou, mas também está lá como a única figura que defende o estado de direito e o cristianismo do caos”, reitera.

Um homem desesperado

A decisão das autoridades eleitorais contra Dodik produzirá efeitos após o termo de um período de recurso. Serão então convocadas eleições antecipadas no prazo de 90 dias.

No entanto, subsiste a confusão sobre quem aplicará a decisão se Dodik se recusar a demitir-se ou impedir as novas eleições. Apesar de a União Europeia ter alargado a sua força de manutenção da paz no país em março, essas tropas não avançaram para deter Dodik, mesmo quando havia um mandado de captura em vigor no início deste ano.

Jasmin Mujanović, membro sénior do New Lines Institute, diz à CNN que as autoridades bósnias e europeias enfrentarão um “grande teste” se Dodik tentar permanecer no cargo.

“Se não se consegue lidar com pessoas como Milorad Dodik, pelo menos na perspetiva da União Europeia, não se pode falar em competir com pessoas como [o líder chinês] Xi Jinping ou Vladimir Putin ou quem quer que seja”, refere.

Apesar de Dodik ter ameaçado desafiar a decisão, Mujanović sublinha que grande parte da sua base de apoio na entidade está a definhar. Durante meses, tem havido “deserção da elite” na República Srpska, à medida que a oposição política começa a imaginar um “futuro pós-Dodik”.

Nebojša Vukanović, fundador de um partido da oposição na entidade, diz que apenas a remoção total de Dodik do cargo poderia acabar com a “crise constante” na política bósnia, e finalmente “libertaria as instituições para processar os responsáveis pelo crime e pela corrupção”. Dodik está sob sanções dos Estados Unidos por cultivar uma “rede de clientelismo corrupto”.

Mas embora alguns na Srpska possam estar a começar a imaginar a vida política sem Dodik, Helić avisa que o líder político poderia tomar medidas imprudentes – como tentar a secessão total da Bósnia – se sentir que não tem nada a perder.

“Um homem desesperado pode decidir fazer algo que desestabilizaria ainda mais o país”, completa.