“Não, este livro não é sobre o filme de Glauber Rocha numa loja de esfirras”. É com uma pitada de humor e fazendo menção ao clássico do Cinema Novo brasileiro e à pequena torta assada originária de países do Oriente Médio, que tem início o livro “Deus e o diabo na terra dos cedros: o Líbano contemporâneo” (Tabla), escrito em conjunto por diversos autores e organizado por Samira Adel Osman, professora do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo, e Murilo Meihy, professor de História contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A descontração, porém, é breve. Quem fala do Líbano fala de super-ricos e pobreza, imigração e emigração, “inferno e paraíso”. Ambivalências que exigem a seriedade encontrada nas páginas seguintes.

A terra dos cedros, árvores que podem atingir grandes alturas e que são citadas na Bíblia como material usado para a “construção do Templo de Salomão”, é localizada em um ponto geoestratégico historicamente cobiçado pelas grandes potências mundiais. De acordo com os autores, esses interesses ocorrem porque a região serve de encontro para os continentes europeu, asiático e africano, sendo uma porta de entrada para os países árabes. “O Líbano faz fronteira ao norte e a leste com a Síria; ao sul, com Israel; e todo o seu lado oeste está em contato com o Mar Mediterrâneo”. Mesmo sendo menor que o menor estado brasileiro, Sergipe, o local é uma terra dividida. Prova disso são as cicatrizes imperialistas e colonialistas expostas nos 10 capítulos de “Deus e o diabo”, escritos pelos seguintes autores: Ahmed Zoghbi,Andrew Patrick Traumann, Carolina Ferreira de Figueiredo, Devlin Biezus, Fernando Brancoli, Geraldo Adriano Campos, Isabelle Christine Somma de Castro, Juliana Foguel Castelo Branco, Karime Ahmad Borraschi Cheaito, Murilo Meihy, Nina Fernandes Cunha Galvão, Paula Carolina de Andrade Carvalho, Rodrigo Ayupe Bueno da Cruz, Samira Adel Osman e Tamires Alves.

Contribuem para ferver o caldeirão cultural libanês as 18 comunidades religiosas reconhecidas oficialmente no país, que é palco da maior diversidade de crenças da região. Conforme os pesquisadores explicam no livro, os otomanos ocuparam a área onde hoje é o Líbano a partir do século 16, expandindo seu poder nos séculos seguintes. Com o início da Primeira Guerra Mundial e a decadência do Império Turco-Otomano, França e Inglaterra, interessadas em ampliar seus poderes econômicos pela Ásia, África e Oriente Médio, concordaram em dividir o território. “Os novos colonizadores daquelas terras impuseram não apenas seu domínio político, mas também sua cultura e sua economia, e exploraram recursos e mão de obra locais”. Porém, como mostra o livro, essa dominação não ocorreu sem resistência.

A principal reação foi o “Pacto Nacional”, criado em 1943 e decisivo para o processo de independência do Líbano. Esse acordo verbal entre as elites nacionalistas e sectárias rivais tornou possível unir forças contra o impopular mandato francês. Depois de sua independência, o Líbano criou um sistema que divide o poder político, jurídico e social entre maronitas, sunitas e xiitas levando em conta a proporção censitária de cada um desses grupos. A ideia era fazer uma distribuição justa, mas o tiro saiu pela culatra. O livro mostra que, gradualmente, esse modelo contribuiu para a fratura social e “impede que importantes reformas políticas sejam feitas para oferecer ganhos coletivos à unidade nacional”.

A criação do Hezbollah, a facção mais poderosa do país e que também participa das eleições como partido político, é considerada por integrantes do mundo ocidental como fonte de instabilidade. Uma curiosidade é que, com o passar do tempo, a “terra dos cedros” passou a ser conhecida como “a Suíça do Oriente Médio”. Isso porque a riqueza ficava concentrada nas mãos de poucos, enquanto cresciam as disparidades sociais, políticas e econômicas. “Na origem de diversos conflitos que eclodiram no decorrer do século 20, como a Guerra Civil Libanesa de 1975, encontram-se os resquícios desses períodos coloniais”. A exemplo do Brasil, o Líbano ainda carrega marcas de séculos de colonização, evidenciadas por divisões, tensões e disputas.

Apesar de seus problemas internos, estima-se que o Líbano seja o país que mais abriga refugiados no mundo em proporção à sua população. Procuram asilo em terras libanesas, principalmente, palestinos e sírios, mas também nascidos na Etiópia, Iraque e Sudão, por exemplo. Os escritores relatam que o país teve que lidar, ao longo dos anos, com a entrada de um contingente populacional significativo e que, inicialmente, essa relação se dava como algo entre “anfitrião e convidado”, supondo que a visita iria embora em algum momento. “Como sabemos, a população palestina não conseguiu retornar e passou a ser vista como um fardo indesejado”. Desse modo, os palestinos não são reconhecidos no Líbano como refugiados. A eles foi atribuída a categoria de “estrangeiros apátridas”, que na prática impõe várias restrições a direitos fundamentais.

Contudo, a exemplo do que ocorre em outras partes do mundo, a arte cumpre um papel muito importante no Líbano. O livro mostra por que a literatura e o cinema foram ferramentas fundamentais para jogar luz sobre os problemas libaneses e têm funcionado como “um projeto de memória a romper o silêncio sobre o passado, tendo a Guerra Civil como seu ponto de inflexão: sua maior preocupação e seu maior trauma”. Na falta de um remédio mais eficaz, o povo parece ter escolhido esquecer as profundas feridas do conflito, que foi se tornando uma espécie de mito urbano. Nesse sentido, as artes cumprem um papel de resgate da memória pela união de um país extremamente diferente onde, apesar de suas muitas religiões, etnias e grupos sectários, todos são minoria.

Entrevista/ Samira Adel Osman




divulgação

(organizadora)

“Entre o paraíso e o inferno,o Líbano vive no purgatório”

Quando vocês decidiram publicar esse livro sobre o Líbano contemporâneo e como foi o processo de escolha dos autores?

Eu e Murilo estamos envolvidos com a questão do Líbano por dois motivos: um é acadêmico, temos escrito, pesquisado e ensinado sobre o Líbano; outro é pessoal e está diretamente ligado às nossas raízes familiares e aos nossos parentes que ainda vivem no Líbano.

Quando elaboramos o projeto, que antes era apenas uma ideia, o mundo vivia as consequências da pandemia em 2020, e no caso do Líbano se juntava a explosão do Porto de Beirute. Preocupados com essas duas questões, e diante dos negacionismos, pensamos no papel da História e do historiador para a compreensão desse mundo.

Buscamos escolher autores que estivessem ligados direta ou indiretamente com o tema, que poderiam ser pesquisadores sobre o Líbano ou sobre outros temas ligados ao Oriente Médio.

Além de incluir professores universitários, também optamos por convidar jovens pesquisadores, mesclando experiências e diferentes níveis de formação.

Vocês afirmam que buscam oferecer ao leitor um “Líbano-purgatório’. O que isso quer dizer?

Pensamos no jogo de palavras com o título, em referência a Glauber Rocha, e em entre o paraíso e o inferno, o Líbano vive no purgatório, devido às sucessivas crises que assolam o país desde sua independência nos anos 1940.

O Líbano e os libaneses saem do inferno, mas não chegam ao paraíso, estão ainda purgando as consequências da dominação colonial francesa, da fragmentação nacional e do sectarismo religioso, sob os quais foi construído a nação libanesa.

Como os interesses colonialistas e imperialistas ainda impactam a sociedade e as novas gerações de libaneses?

Esses interesses nunca abandonaram o Líbano e o país ainda sofre essas consequências, seja pelas intervenções em sua vida doméstica (por exemplo quando houve a explosão, a visita de Macron ao Líbano se assemelhava a de um diretor punindo um aluno mal-comportado), como nos conflitos regionais que sempre impactam o país (como o ataque de Israel ao Líbano em 2024).

Para as novas gerações, a solução tem sido a imigração, seja para longe (EUA, Canadá, Austrália) ou mais próximo (como os Países do Golfo), já que desemprego, inflação, pobreza, economia instável, guerras e conflitos impedem a possibilidade de fixação no país.

Qual é o tamanho do poder do Hezbollah na região e o que esse movimento gera de instabilidade para o país? Por quê?

Tem sido um pouco complexo dimensionar o poder do Hezbollah depois dos ataques de Israel às lideranças do Hezbollah em 2024, porque não se sabe de fato a proporção dos estragos, tampouco a capacidade de reorganização do grupo. Do ponto de vista político, o Hezbollah é um ator fundamental como se pode ver recentemente na eleição para presidente e demais distribuição de cargos.

O Hezbollah precisa ser compreendido como uma força política do país e afirmar que ele gera instabilidade é aceitar a visão ocidental que o enquadra como terrorista. Então poderíamos pensar além de estabilidades ou instabilidades, e considerar como mais uma força política do país.

Como funciona o atual sistema político do Líbano? Existem semelhanças com outros países? Quais os pontos positivos e negativos?

Desde sua criação como país independente, baseado no Pacto Nacional (Al Mithaq Al-Watani), o Líbano tem uma composição política única baseada no confessionalismo no qual os cargos políticos são distribuídos de acordo com a religião e uma proporção baseada no censo populacional de 1932.
Então o presidente é maronita, o primeiro-ministro é sunita, o chefe do parlamento é xiita, e assim por diante, além de garantir uma proporção de 6 cristãos para 5 muçulmanos nos cargos executivos e legislativos. Essa é uma das reivindicações e motivação da Guerra Civil deflagrada em 1975.

Os Acordos de Taif, assinados em 1990, trataram de levar a um equilíbrio de poder entre cristãos e muçulmanos, dividindo os cargos legislativos igualmente, manteve-se a distribuição religiosa anterior mas limitou os poderes do presidente e aumento os do primeiro-ministro, além de estender o cargo de presidente do parlamento de um para quatro anos.

Ainda assim, o confessionalismo, que deveria ser progressivamente extinto, continua dominando não só a vida política, como toda a vida social e comunitária do Líbano, interferindo desde a questão dos casamentos (não há casamento civil no Líbano, apenas religioso e de acordo com cada credo), como a distribuição de cargos, favores, acesso à saúde, educação e até coleta de lixo ou pavimentação de ruas.

Quais as raízes da crise humanitária no Líbano e o que as grandes potências mundiais têm feito para ajudar a solucionar o problema? Quais as perspectivas dos refugiados que buscam abrigo no Líbano?

A crise humanitária do Líbano pode ser vista como decorrência do fim da Guerra Civil em 1990 e uma guinada econômica neoliberal nos anos 2000 e 2010, que como consequência deixou os pobres mais pobres, e a classe média a um passo de afundar no mesmo poço.

Inflação, desvalorização da moeda, desemprego, denúncias de corrupção, enriquecimento ilícito mantiveram a maior parte da população fora do benefício das reformas econômicas, levando as gerações do presente a buscarem a mesma solução do passado, emigrar.

A crise humanitária do Líbano também é reflexo da crise política e da crise econômica do país e de seus vizinhos, os palestinos e os sírios. O Líbano, que já foi local de refúgio para os palestinos, recebeu mais de um milhão de refugiados sírios desde a Guerra Civil da Síria iniciada em 2011. Além disso, os recentes ataques de Israel ao país deixam mais uma ferida aberta e mais problemas econômicos e de infraestrutura a serem solucionados.

As potências mundiais fazem pouco ou nada pelo Líbano, além de se omitir ou ainda se eximir de condenar e punir Israel pelos recentes aataques, como foi o ataque dos pagers que teve como alvo a população civil. Quando há apoio financeiro, a conta chega logo e é extremamente elevada, colocando o Líbano em uma espiral de crise infinita.

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Trecho

“Independentemente das paixões e idiossincrasias, cada capítulo deste livro contou com alguns propósitos em comum que nortearam a sua escrita. […] Da origem dos autores ao conteúdo dos textos, aqui, só não há espaço para sectarismos cafonas e demônios disfarçados de anjos. As contradições e divergências de visões são incentivadas, já que para fazer um bomknefe(doce libanês) é preciso juntar os rios de leite e mel do paraíso e cozinhá-los no fogo do inferno.”




Reprodução

“Deus e o diabo na terra dos cedros: o Líbano contemporâneo”
• Murilo Meihy e Samira Adel Osman (orgs.)
• Editora Tabla
• 264 páginas
• R$ 73 (capa comum) / R$ 57 (e-book)