Traduzido no Brasil pela primeira vez só neste ano, “Proclamem nas Montanhas” é o livro que marcou a estreia literária de James Baldwin, em 1953.

Um dos principais nomes da literatura ocidental no século 20, ensaísta, agente político e figura pública incontornável, Baldwin apresenta uma história ocorrida no Harlem em 1935, durante o aniversário de 14 anos de John Grimes.

Filho primogênito de Elisabeth e bastardo do pastor Gabriel, John é um jovem dedicado e carente de amor, acuado pelo autoritarismo violento do padrasto, que o renega a contragosto da mãe. Nesse mesmo ambiente há os irmãos de John, o provocativo e rebelde Roy e a jovem Sarah, ambos filhos biológicos de Gabriel; além de sua tia, Florence, uma mulher autônoma que migrou para o norte do país.

Com exceção da tia, todos são frequentadores assíduos do Templo dos Batizados pelo Fogo, congregação religiosa dirigida a mão de ferro por Gabriel. O patriarca de moralismo e rigidez clerical ímpar assombra o romance com sua presença castradora.

Na família, ele demanda rezas constantes, impede os filhos de brincarem na rua, cobra trabalhos da esposa e exige controle sobre o destino das crianças, afastando-as de rebaixamento espiritual. Já na igreja, ele vocifera uma conduta que protegeria os devotos de qualquer pecado. Em um dos casos mais notáveis, Gabriel expõe dois jovens que flertavam uma interação amorosa, acusando-os de profanação.

Em “Proclamem nas Montanhas” todos estão envoltos em dilemas humanos severos, cujo julgamento não se concretiza em visões dualistas do que é bom ou mal; um traço característico de Baldwin, escritor de grande apreço pelas porosidades da identidade.

Gabriel, por exemplo, mostra que seu palavreado bíblico caminha de mãos dadas com grandes hipocrisias, como a agressão da esposa. Elisabeth, por sua vez, assume a infelicidade porque o contrário colocaria a família em risco. Para viver a liberdade, Florence deixa a mãe próxima a seu leito de morte.

E o jovem John sofre por não sentir Deus, pena com o desejo, a sexualidade e acima de tudo com a impossibilidade de ser reconhecido por Gabriel, que ele tenta alcançar não por amor, mas ódio.

O olhar cuidadoso ao conflito moral é um dos pontos mais impressionantes do romance, já que humaniza os sujeitos racialmente depreciados na época —em 1953, as leis segregacionistas ainda imperavam nos EUA. No livro, os personagens lidam com um cenário de incerteza e dúvida a respeito do que são, acreditam e desejam.

Não é o passado mítico ou a violência que singularizam a humanidade daquelas pessoas, mas sim o questionamento do que fazer quando não sabemos o que deve ser feito. Se a dúvida marca como a experiência é singular, o campo religioso é rico para abordar os dramas subjetivos porque frutifica crises e esperanças.

Daí que o culto encenado pela família e pela comunidade no Templo dos Batizados pelo Fogo tenha funções múltiplas no romance, pois ali mulheres e homens encontravam instantes de reflexão sobre si, ao mesmo tempo em que partilhavam experiências em comum. É por isso que a estrutura do texto avança e recua temporalmente pelas preces das personagens, permitindo o encontro com os eventos particulares e da história social de um país.

Em síntese, se há a contradição ou até mesmo a hipocrisia dos sujeitos, Baldwin não é leviano para esquecer que a Igreja negra e a fé foram territórios de solidariedade, comunhão, proteção, protesto e política numa sociedade que estuprava e matava negros, como bem ilustra o triste destino de Deborah e Royal.

Não são poucos os adjetivos para qualificar a força e atualidade de “Proclamem nas Montanhas”, mas não podemos pôr de lado o traço autobiográfico do romance, tão comum ao estilo de Baldwin. Tal como John, ele também teve um padrasto pastor e opressivo, foi um jovem de sucesso escolar, gay e que durante anos apostou no Evangelho como salvação pessoal.

Com uma fricção entre os limites da experiência autoral e do texto literário, Baldwin, homem fotografado, filmado e notado por seus grandes olhos, permite enxergar que o drama do escritor é o dos personagens e, de muitas formas, o nosso.

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