Ana Josefa Cardoso explica que, apesar de, supostamente, o português ser a língua utilizada na escola primária para explicar as diferentes matérias escolares, torna-se inevitável usar a língua cabo-verdiana — a língua que as crianças de facto conhecem e que usam em casa — para explicar os conceitos ou a própria aprendizagem do português.
“A língua da escola supostamente seria o português, mas na sala de aula isso não acontece totalmente. Porque se os professores quiserem efetivamente passar os conteúdos, muitas das vezes têm de recorrer à língua materna para poder explicar até o próprio português. Portanto, a língua materna tem estado na escola de uma forma marginal, sem se assumir a sua presença, mas ela tem estado sempre lá. E também sabemos que o facto de o português ser a língua só das quatro paredes da sala de aula faz com que as pessoas tenham um discurso limitado no português, porque toda a gente sabe que os discursos de sala de aula são fabricados, não são contextos reais de comunicação. Não é a língua do dia a dia, não é a língua do intervalo, não é a língua das brincadeiras.”
Durante as suas investigações, Márcia Rego deparou-se com esta realidade em várias dimensões da sociedade cabo-verdiana. “Lembro-me de entrevistar padres, que obviamente faziam a missa em português, e depois eu perguntava-lhes: ‘então e a confissão?’ ‘Ah, essa parte é em crioulo’. Porque é a língua da intimidade. E não é só isso: também foi sempre uma forma de subverter. As piadas, os comentários sobre o poder e os colonizadores, até hoje as críticas políticas, acontecem em crioulo. Uma das coisas que complicam a oficialização é que o crioulo resiste a ser regularizado. Historicamente, foi a língua da oposição. E é algo que se reflete em tudo: por exemplo, muitos cabo-verdianos têm um nome português, mas depois têm uma alcunha, um ‘nominho’, mais perto do crioulo. Há sempre uma versão informal para tudo, em diferentes níveis culturais.”
Márcia Rego acredita, por isso, que o processo para que o cabo-verdiano se torne “verdadeiramente” uma língua oficial, com o mesmo peso do português, “vai demorar”.
“Por muitos séculos, o crioulo foi considerado uma corrupção do português, não era nem considerado língua. E muitos dos próprios cabo-verdianos consideram o crioulo uma língua que não vale tanto, é algo que está muito enraizado”, aponta. “A questão da língua é uma metáfora perfeita para um dilema, uma ambivalência que está presente em muitas questões da sociedade cabo-verdiana: existe uma resistência a ser-se considerado africano e, ao mesmo tempo, sabem que não são exatamente europeus. Isso também aconteceu com a bandeira de Cabo Verde. Depois da independência fez-se uma bandeira bem africana, com as cores comumente usadas, com o milho. Nos anos 90, adotou-se uma bandeira que se parece com a da União Europeia, com o azul e as estrelas em círculo.”
Há ainda outra camada a acrescentar às questões sociais em torno da língua. Ainda hoje, o português é uma língua com um estatuto de elite, algo que acaba por também pesar nas circunstâncias que têm moldado o processo de oficialização da língua cabo-verdiana. “Não há melhor coisa que a língua cabo-verdiana para exprimir a cabo-verdianidade”, acredita Márcia Rego. “Mas o português é um símbolo de estatuto, porque quem teve uma educação mais formal fala bem o português. Toda a gente fala crioulo, mas nem toda a gente fala português. Então existe uma tradição literária em português, uma elite intelectual que fala super bem a língua e que beneficia desse estatuto. E é essa mesma elite que estuda o crioulo como uma língua independente. É algo complicado de gerir e de lidar.”