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Nos anos 1960 e 1970, quando a indústria aeronáutica acreditava que a velocidade supersónica seria “o próximo grande passo” da aviação comercial, três potências entraram numa corrida tecnológica. A União Soviética desenvolveu o Tupolev Tu-144, os Estados Unidos apostaram no Boeing 2707, e a aliança europeia franco-britânica criou o Concorde.
Duas décadas depois, apenas os europeus tinham conseguido transformar a ambição em realidade comercial. O projeto soviético foi “um desastre total”, o americano foi cancelado antes de levantar voo, e o Concorde voou durante 27 anos, tornando-se um ícone da engenharia europeia.
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Agora, mais de 20 anos após o último voo do Concorde, empresas norte-americanas como a Boom Supersonic voltaram à carga. Em janeiro, conseguiram quebrar a barreira do som com um avião de teste, com a promessa de revolucionar novamente as viagens aéreas. Será que é mesmo assim?
Para Pedro Castro, consultor em aviação, aeroportos e turismo, este ressurgimento não é aleatório: “Parece quase como uma espécie de resposta americana tardia. Um ajuste de contas histórico.” O especialista vê no projeto uma tentativa dos Estados Unidos de recuperar terreno perdido numa corrida que a Europa venceu há décadas.
Tupolev Tu-144, arquivo RIA Novosti, imagem #566221 / Lev Polikashin / CC-BY-SA 3.0, CC BY-SA 3.0,
créditos: via Wikimedia Commons
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Os Estados Unidos nunca engoliram muito bem o facto desta supremacia tecnológica ter sido dos europeus e não deles.
O Concorde não nasceu por acaso. Era contemporâneo dos Boeing 747, aviões que começaram a massificar o transporte aéreo, mas seguiu o caminho oposto. “O Concorde foi uma espécie de culminar de grandes avanços que foram feitos na aviação militar”, explica Pedro Castro, referindo-se às inovações da Segunda Guerra Mundial que inspiraram o projeto anglo-francês, como os motores a jato e as cabines pressurizadas.
Mas o triunfo técnico europeu enfrentou logo obstáculos políticos. Quando o Concorde começou a voar comercialmente em 1976, os Estados Unidos proibiram-no de aterrar no seu território. “Já na altura quando o Concorde nasce, já se sabe que a rota viável para este avião tem a ver com Nova Iorque”, nota Pedro Castro. A autorização só chegou quase um ano e meio depois. “Os Estados Unidos nunca engoliram muito bem o facto desta supremacia tecnológica ter sido dos europeus e não deles”, acrescenta o consultor.
O sucesso técnico, porém, não se traduziu em viabilidade comercial. O Concorde transportava apenas cerca de 100 passageiros e queimava cerca de 20 toneladas de combustível por hora, numa época em que o choque petrolífero de 1973 tornava a eficiência energética crucial. “Acabou por ser um Rolex com asas”, resume Pedro Castro. “Um produto de luxo simbólico, com muito status, mas que teve muito impacto negativo nas contas das companhias.”
Quantas rotas do mundo precisam de um avião supersónico?
A questão central mantém-se inalterada desde os anos 1970: existe mercado suficiente para justificar a aviação supersónica comercial? Pedro Castro mostra-se cético: “Quantas rotas no mundo, precisam e aguentam um avião supersónico? Estes aviões têm uma lógica operacional completamente diferente dos aviões convencionais.”
A Boom promete colocar o Overture ao serviço em 2029, com encomendas de 130 aviões de companhias como American Airlines, United e Japan Airlines. Mas estas, segundo a CNN, são “encomendas não-vinculativas” que o especialista vê com desconfiança, comparando-as ao caso do Airbus A380.
“Quando o A380 saiu, eles diziam que iam vender mais de 2 mil aviões. No final, nem 300”, recorda Pedro Castro. “Claro que, se for ver à folha Excel, eu consigo justificar tudo. Consigo inventar dados que não existem, porque estão a trabalhar em cenários hipotéticos.” Além disso, o prazo é considerado “irrealisticamente otimista”, dados os desafios de certificação e a complexidade geopolítica atual.
A Boom estima tarifas de cerca de 5 mil dólares para uma viagem transatlântica, equivalente ao preço atual da classe executiva. Mas o consultor questiona se haverá procura suficiente. Para se ter uma ideia, no final da sua vida útil, o Concorde só conseguia vender cerca de metade dos lugares disponíveis.
Concorde G-BOAC da British Airways, Eduard Marmet, CC BY-SA 3.0 GFDL 1.2,
créditos: via Wikimedia Commons
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A tecnologia e as limitações estruturais
Muito mudou desde os anos 1970. Os materiais compósitos evoluíram drasticamente, os motores tornaram-se mais eficientes e aumentou a autonomia dos aviões. O conforto também melhorou significativamente face ao ambiente “claustrofóbico” do Concorde, recorda o académico.
O Overture da Boom não terá o sistema de combustão extra que o Concorde usava para atingir velocidades supersónicas, o que deve reduzir significativamente o consumo de combustível e o ruído. Além disso, foi concebido para funcionar com “combustível de aviação sustentável”, segundo a startup dos EUA.
Contudo, os problemas estruturais persistem. O ruído continua a limitar os voos supersónicos sobre terra, restringindo as rotas viáveis. Nos Estados Unidos, porém, a situação mudou bastante: em junho deste ano, o Presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva que levanta efetivamente a proibição de 52 anos sobre voos supersónicos civis, desde que não produzam boom audível no solo. Esta decisão pode abrir rotas transcontinentais domésticas para a Boom.
O mercado “não está a pedir” mais velocidade
Há um outro fator que distingue a época atual da década de 1970: a evolução do digital. “O mercado corporativo não recuperou os níveis pré-Covid”, nota Pedro Castro, explicando que as videoconferências e o trabalho remoto reduziram drasticamente a necessidade de viagens de negócios urgentes.
“Está cerca de um terço abaixo”, quantifica o especialista, referindo-se às viagens corporativas nos Estados Unidos. “Não é porque não haja negócio, é porque as pessoas hoje utilizam outros mecanismos para se reunir.”
Esta mudança comportamental afeta precisamente o segmento de mercado mais promissor para a aviação supersónica: executivos dispostos a pagar valores elevados por viagens mais rápidas. “Se eu pagar do meu bolso, eu até faço escala”, brinca o docente.
Paralelamente, a aviação convencional evoluiu noutra direção. Já existem voos sem escala entre Perth e Londres, com 20 horas de duração, e o objetivo é conseguir Sydney-Londres sem escala. “O mercado não está a pedir ‘faça isto em 3 horas’. O mercado está a pedir ‘faça aviões que tenham autonomia para fazer Sydney-Londres sem escala’”, observa.
A próxima revolução será a proximidade, não a velocidade.
Pedro Castro vê o futuro da aviação noutra direção completamente diferente: a mobilização individual através de drones autónomos. “A verdadeira revolução é uma individualização extrema da mobilidade aérea”, prevê.
O especialista imagina um cenário em que qualquer pessoa pode “pedir um drone” que aterrasse ao seu lado e a levasse diretamente ao destino, “sem filas, sem segurança, sem escalas”. Esta visão inspira-se na evolução dos táxis para os Uber: de pontos fixos de recolha para serviços porta-a-porta.
“Acho que a próxima grande inovação não será ligada à velocidade, mas sim à proximidade. Não ao ruído, mas sim ao silêncio. Não ao luxo, mas a uma acessibilidade extrema que não conhecemos hoje.”
Como resume o consultor em aviação, aeroportos e turismo: “Repetir algo do passado com materiais modernos, eu não acho que isso seja inovar.”