Há pouco mais de um ano, um artigo publicado na revista científica Nature fazia uma afirmação radical: a economia mundial já estava a caminho de perder 19% do Produto Interno Bruto (PIB) global até 2050, em comparação com o que teria sido sem as alterações climáticas. Em 2100, num cenário de emissões elevadas, previa-se que o PIB mundial seria 62% inferior ao que seria sem alterações climáticas. Mas uma nova análise encontrou um problema nos dados que distorcia essa conclusão.
Se o mundo estivesse mesmo já a caminho da perda de 19% do PIB mundial, o impacto das alterações climáticas será três vezes superiores às estimativas anteriores. É compreensível que isto tenha desencadeado o alarme de que o aquecimento global estivesse já a prejudicar muito mais do que se pensava a economia mundial.
O estudo do reputado Instituto de Investigação sobre o Clima de Potsdam, na Alemanha, teve grande impacto nas redes sociais; de acordo com uma análise efectuada pela agência britânica Carbon Brief, foi o segundo documento mais citado nos media em 2024. A análise e o conjunto de dados do documento, entretanto, foram utilizados para planeamento financeiro pelo Governo dos Estados Unidos (EUA), Banco Mundial e por outras instituições.
Mas há um problema, de acordo com uma nova análise, feita por cientistas norte-americanos, e publicado também na revisa Nature: os resultados do estudo tinham ficado distorcidos porque estavam errados os dados provenientes de um país da Ásia Central – o Uzbequistão.
Com o novo cálculo, os efeitos das alterações climáticas sobre a economia devem ser três vezes mais reduzidos, adianta a AFP. Mas os autores do estudo inicial contestam também esta conclusão.
Se o Uzbequistão for retirado do conjunto de dados, as previsões diminuem substancialmente – de 62% de perda de PIB em 2100 para 23% e de 19% em 2050 para 6%, disse ao Washington Post Solomon Hsiang, director do Laboratório de Políticas Globais da Universidade de Stanford e um dos autores do novo comentário, publicado na semana passada, que corrige os dados do artigo publicado há um ano.
“Toda a gente que trabalha com dados tem a responsabilidade de os analisar e de se certificar de que são adequados à sua finalidade”, afirmou Solomon Hsiang.
Erros sim, mas ainda é válido
Os autores do artigo original defendem, contudo, que a análise continua a ser válida, apenas precisa de ser corrigida, dizem em comunicado. O erro relativo ao Uzbequistão, dizem, deveu-se a problemas com a forma como os dados originais foram processados. Numa análise adicional, corrigiram os dados do Uzbequistão e alteraram também a forma como o modelo controlava as tendências económicas subjacentes.
“Descobrimos que, ao fazer isso, as nossas estimativas tornam-se mais robustas”, disse à agência noticiosa AFP Maximilian Kotz, do Instituto de Potsdam.
As contas, uma vez feitas com nova metodologia, divergem das dos cientistas norte-americanos. Utilizando este método alterado, obtiveram resultados que coincidem de perto com as suas conclusões originais. Em vez de 19% de danos até 2050, por exemplo, a nova análise mostra 17%.
“Estamos gratos, e penso que é uma boa parte do processo científico o facto de terem apontado estas questões”, disse Leonie Wenz, professora de Economia Ambiental na Universidade Técnica de Berlim e co-autora do estudo inicial. “Mas o mais importante é que as principais conclusões do estudo se mantêm e as estimativas sofreram apenas ligeiras alterações.”
“Os prejuízos económicos causados pelas alterações climáticas até meados deste século vão ser substanciais e ultrapassam os custos da mitigação [redução das emissões de gases com efeito de estufa]. Estes prejuízos são causados sobretudo pelas mudanças de temperatura e afectam mais as regiões com baixos rendimentos e que historicamente são responsáveis por emitir menos gases de estufa”, diz o Instituto de Investigação sobre o Clima de Potsdam, em comunicado.
Muitos outros estudos confirmam que os prejuízos causados pelas alterações climáticas são maiores do que reduzir as emissões de gases de estufa
LINDSEY PARNABY/EPA
Estes resultados, agora revistos, são consistentes com o que outros cientistas têm concluído relativamente aos impactos económicos das alterações climáticas, frisam os cientistas da instituição alemã.
Altos e baixos no Uzbequistão
Solomon Hsiang e os co-autores, os estudantes de pós-graduação Tom Bearpark e Dylan Hogan, descobriram o erro removendo um país de cada vez do conjunto de dados. Todos os outros países que retiraram apenas alteraram ligeiramente as previsões do PIB. Mas quando o Uzbequistão foi retirado, os resultados mudaram drasticamente.
De seguida, analisaram mais de perto os dados do Uzbequistão. E perceberam que houve uma verdadeira montanha-russa com o PIB deste país. Caiu drasticamente no ano 2000, quase 90%. Em 2010, o PIB registou um aumento de mais de 90% em algumas regiões. Noutros anos, registaram-se também grandes oscilações. De acordo com o Banco Mundial, o crescimento do Uzbequistão nos últimos 40 anos tem sido bastante modesto. Varia entre uma perda de 0,2% e um crescimento de 7,7%.
Essas oscilações foram tão drásticas que dominaram o modelo usado para os cálculos do artigo, que relacionava as alterações de temperatura e precipitação com o crescimento económico. O resultado foi um modelo que mostrava que o PIB sofreria fortes impactos das alterações climáticas.
Mas as alterações feitas pela equipa do Instituto de Potsdam exigiram mudanças na metodologia do trabalho, pelo que os críticos continuam cépticos. “A ciência não funciona alterando a configuração de uma experiência para obter a resposta que se pretende”, disse Hsiang ao Washington Post. “Esta abordagem é antiética e contrária ao método científico”.
Nature prepara resposta
O que é que pode resultar desta polémica em torno de dados científicos? Karl Ziemelis, editor-chefe de ciências físicas e aplicadas da revista Nature, disse tanto à AFP como ao diário norte-americano que os estudos estão a ser analisados, e que serão “tomadas medidas editoriais adequadas assim que o assunto fosse resolvido”. Ou seja, pode vir a ser emitida uma correcção oficial em breve.
“A ciência tem funcionado, e sempre funcionará, através de um processo de constante interrogação e revisão, quer seja durante o curso da investigação, na revisão por pares ou na avaliação pós-publicação”, acrescentou Karl Ziemelis ao Washington Post.
Frances Moore, professora de Economia Ambiente na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que não esteve envolvida em nenhum dos estudos, concorda que a correcção alterou as implicações da investigação inicial. As projecções são de um desaceleramento “muito grande, que excede em muito os custos de reduzir as emissões de fases cm efeito de estufa”, disse à AFP.