Por DIOGO FAGUNDES*
Comentário sobre o livro de Pierre Drieu la Rochelle
Pierre Drieu la Rochelle foi um escritor francês que será sempre lembrado – e justamente – pelo opróbrio de ter servido à causa do colaboracionismo com os nazistas. Amigo do embaixador alemão, assumiu posições de direção na principal instituição literária francesa durante a ocupação, La Nouvelle Revue française. Suicida-se logo após a libertação de Paris pelos aliados. Não se tratava de mero oportunismo: desde 1934, pelo menos, com a publicação de “Socialismo fascista”, já alimentava esperanças no hitlerismo. Sua visão de fascismo era totalmente própria, envolvendo uma alta dose de sincretismo: um ódio ao mundo burguês baseado não em ideias marxistas (que abominava) mas em uma perspectiva aristocrática, de retorno à glória de um passado perdido. Chegou até mesmo a sonhar com uma aliança euroasiática anti-atlântica, o que o torna um precursor de pensamentos “nazi-bolcheviques” que viriam a florescer em pequenos círculos da extrema-direita europeia no pós-guerra. Como Marx já notara em seu Manifesto Comunista, é possível existirem “socialismos” de inspiração reacionária.
Como este intelectual refinado, frequentador dos círculos artísticos de vanguarda, próximo de inúmeros intelectuais e escritores que se bandearam para as paragens do pensamento marxista (André Malraux, Louis Aragon, André Breton), pôde chegar aos extremos do apoio entusiasmado ao nazismo? Por que veredas caminhou este dândi e esteta, dado ao comportamento estroina e boêmio, para que se transmutasse em legitimador do pior tipo de militarismo obcecado com disciplina?
A fim de responder a estas questões, é útil ler “Gilles”, publicado em 1939, mas com texto integral somente em 1942, seu romance mais famoso. Trata-se de uma narrativa de caráter fortemente autobiográfico. O personagem principal, que dá nome ao romance, passa por boa parte das vivências que marcaram a vida de Rochelle, mantendo também traços do seu caráter: a experiência formadora do combate na Primeira Guerra Mundial; a vida, em meio à decadência urbana, de um filho do campo; as peripécias, algo patológicas, com as (muitas) mulheres; o convívio com grupos artísticos de vanguarda e com comunistas, resultando em desencanto; o ódio político à Terceira República e ao mundo moderno, em geral, que o levam ao fascismo.
O extenso romance revela o enorme talento literário do escritor, que, se não teve o efeito revolucionário na prosa gerado por Louis-Ferdinand Céline (outro colaboracionista), conseguiu ser reconhecido para além de seu tempo. Prova disso é que a famosa coleção “Bibliothèque de la Pléiade” da editora Gallimard, que canoniza os grandes autores da literatura, publicou recentemente Drieu de la Rochelle, não sem grande protesto dos que gostariam, por razões políticas bastante compreensíveis, evitar qualquer perpetuação de sua memória. Afinal de contas, seu grande romance está longe de ser afastado da política fascista. Pelo contrário, é inteiramente perpassado por ela.
Talvez o maior interesse de “Gilles” resida na construção que empreende da anatomia psicológica de um homem cujo desespero extremo resulta na adesão ao fascismo. Uma verdadeira fenomenologia do “devir-fascista”. De certa forma, está para o fascismo como os grandes romances de Malraux (“A condição humana”, “A esperança”) estão para a política comunista daqueles tempos. Nele, vemos como a sensibilidade radical, típica dos estetas e inconformistas, ao aliar-se com o ódio à decadência do mundo moderno, gera uma combinação explosiva. Trata-se de um peculiar reacionarismo, pois colorido de tinturas modernistas. Uma filosofia vitalista de inspiração nietzscheana (mas na qual figuram também alusões a Platão e Pascal) forma o pano de fundo para temas clássicos do pensamento reacionário da época, como a contraposição entre a força telúrica e tradicional do campo frente à decadência massificadora das cidades (lembremos o sucesso que Oswald Spengler, para quem havia uma diferença essencial entre Kultur autêntica e Zivilisation artificial, alcançou no período entreguerras) ou, ainda, o desprezo à mecanização gerada pelo racionalismo da filosofia das Luzes. O falatório conservador, morno e hesitante da política parlamentar, representada sobretudo pelo Partido Radical, o grande sustentador da Terceira República, é um emblema da impotência dos tempos em produzir a política grandiosa, viva e heroica que ele via sendo realizada pelas forças nazifascistas.
Para além do desprezo à democracia parlamentar e suas manobras da pequena política rotineira, motivado por ideais românticos de grandeza proporcionado pelo mito de um novo Império europeu (Rochelle pode ser tudo, menos um nacionalista provinciano convencional: adere, sobretudo, a uma visão identitária de Europa), a mola propulsadora da passagem ao fascismo está num fato destacado por Jean-Paul Sartre em sua análise do romance[i]: o auto-ódio. Com efeito, Gilles sonha com uma disciplina suprema à qual não consegue se submeter em sua vida cotidiana; sua política é, em grande parte, fantasiosa e deslocada; seu isolamento mental (mesmo quando está em grupo, nunca, de fato, está presente) é acompanhado de uma consciência aguda de suas fraquezas morais, de sua torpeza e até de sua vileza. Um sonho de heroísmo sem heroi, uma moral de aço sem ações práticas que a legitimem ou, em termos psicanalíticos, um inflacionamento do Ideal do Eu e do superego em contraposição radical ao gozo real: eis os elementos da química fascista, uma máquina de frustração eterna projetada em miragens de grandeza inalcançáveis. Se São Paulo já destacava que o amor-próprio é uma condição indispensável para a prática do amor ao próximo dos cristãos, Rochelle prova a validade simétrica da fórmula: a misantropia extrema é precedida de um convulsivo ódio a si mesmo.
O que chama a atenção nesta peculiar revolta contra a civilização em nome dos valores de uma verdadeira Civilização passada é o modo como a figura do Judeu (grafado, assim, em maiúscula, em vários momentos do romance) constitui uma espécie de símbolo perfeito da decadência moderna para Rochelle. Ela aparece ao longo do livro em uma série de avatares:
- Myryam Falkenberg, sua primeira esposa, filha de um judeu milionário. Casa-se apenas por conveniência já que não sente qualquer tipo de atração por ela. Estudante de química, ela representa não só um tipo de mulher não feminina mas, também, a fria e mecânica cultura das ciências, que tanto estrago fez ao mundo, na concepção de Rochelle. Sabemos o quanto os judeus estiveram ligados ao desenvolvimento de todos os ramos da ciência.
- No início do romance, a breve aparição de um amigo anti-guerra, causando profundo rechaço em Gilles, que, apesar de ter vivenciado os horrores da primeira guerra (e Rochelle chega mesmo a afirmar o caráter bárbaro e pouco romântico da guerra contemporânea em seus ensaios políticos, como no já mencionado “Socialismo fascista”), é um filho orgulhoso dela, sentindo uma espécie de atração vital pelos valores que representa. Este “amigo” simboliza o desapego às injunções da pátria, devido ao desligamento de qualquer solo firme.
- A enfermeira que se aproxima de seu círculo de amizades vanguardistas (denunciado como fútil e pretensioso) na segunda parte do romance. Psicanalista e marxista, ela simboliza duas dimensões da modernidade – e ideais de emancipação – às quais não apenas dois nomes fundadores originados do judaísmo estão ligados (Marx e Freud), mas uma imensa lista de outros tantos que se atraíram para estes campos. Havia tantos judeus entre os bolcheviques que pôde-se criar a expressão “judaico-bolchevique”, usada abundantemente por Hitler.
Há também outras personagens judias, como Preuss, um agitado e confuso colaborador de Gilles em suas iniciativas jornalísticas, que simboliza uma espécie de oportunismo em busca de fama, mas, ao fundo, conservador, pois incapaz de romper com as amarras da Terceira República. No entanto, essas três figuras supracitadas formam uma verdadeira estrutura ideal do judaísmo para Rochelle: i) o universalismo desinteressado e racional da ciência moderna; ii) a oposição ao chauvinismo militarista das guerras imperialistas; iii) a adesão a duas práticas (política revolucionária marxista e psicanálise) que abalaram profundamente o mundo moderno, em nome, não de um regresso às grandezas perdidas da Tradição, mas de uma modernidade superior.
Vemos que esta estrutura comporta uma lógica, isto é, cada figura implica a outra. A ciência é uma atividade universalista, já que não envolve nenhuma consideração pelas particularidades locais e étnicas de quem fala: há uma verdadeira Internacional da comunidade científica. Este universalismo racionalista está presente no rechaço a uma guerra motivada por razões puramente nacionais e também está ligado ao internacionalismo do marxismo. Este, por sua vez, assim como a psicanálise, proclama-se abertamente em conformidade com os ideais da ciência.
A imagem comum do Judeu como um compósito de racionalismo universalista e subvserviso foi determinante para a corrente de opinião reacionária desde, pelo menos, o famoso caso Dreyfus, que dividiu a França ao longo do fim do século XIX e início do século XX. Charles Maurras, para citar apenas um dos maiores nomes desta linhagem (e por quem Rochelle foi profundamente influenciado), adorava responsabilizar os judeus, em conluio com os protestantes e maçons, pela decadência da nação francesa. O antissemitismo, ademais, estava presente, como costuma acontecer nas mentalidades conspiracionistas, em meio aos protestos de 6 de fevereiro de 1934, envolvendo uma mobilização dos grupos fascistas franceses contra escândalos de corrupção protagonizados por Stavisky, uma data que foi uma espécie de conversão subjetiva profunda, um verdadeiro caminho de Damasco, para Rochelle – e, por outro lado, alertou aos comunistas sobre os perigos do fascismo, resultando na política de Frente Popular, vitoriosa eleitoralmente em 1936.
Mudemos bruscamente de terreno: o quanto o Estado de Israel é fiel a este emblema estrutural, que mobilizou tanto o ódio da extrema-direita, quanto as simpatias da esquerda? Na verdade, é possível constatar que há uma inversão completa.
No campo da ciência, pode-se dizer que há continuidade: afinal de contas, Israel não é conhecido por startups de alta tecnologia?
Ocorre que, agora, tal ciência é servil aos interesses financeiros e militaristas de um Estado colonizador e expansionista. O que nos leva ao segundo elemento do esquema: se o judeu era visto com suspeita por sua heteropia, isto é, seu ponto de vista descentrado que lhe situava de forma indiferente aos sentimentos militaristas mobilizados pelas paixões nacionais, permitindo-lhe melhor enxergar o absurdo da guerra moderna de rapinagem, hoje Israel representa algo diametralmente oposto: o belicismo chauvinista.
Por fim, nada mais distante de Israel atual do que as tradições revolucionárias e emancipatórias.
Concluímos, assim, que estamos diante de uma vasta transformação no modo como o Judeu, enquanto figura emblemática, é lido no Ocidente. De paradigma dos efeitos dissolventes da comunidade nacional “orgânica” devido ao internacionalismo, racionalismo e adesão às ideias revolucionárias para um fetiche sagrado mobilizado pelos exatos mesmos atores que antes o detestavam: potências militaristas e colonizadoras. Contra tal inversão, lutam muitos judeus corajosos que não aceitam ver sua histórica tradição emancipatória canalizada para causas opressivas, a exemplo de Ilan Pappé, historiador israelense que compartilhou sua inteligência conosco, brasileiros, durante sua visita ao país nesta última semana, iniciada em 4 de agosto de 2025.
*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.
Referência
Pierre Drieu la Rochelle. Gilles. Paris, Gallimard, 1973, 704 págs. [https://amzn.to/4ouu1HF]
Nota
[i] Os breves mas precisos comentários de Sartre sobre Rochelle podem ser encontrados em dois artigos. O famoso “Que’est-ce qu’um Collaborateur?”, de 1945, e “Drieu la Rochelle: ou la haine de soi?”, publicado originalmente de forma clandestina em 1943 e republicado na primeira edição da nova edição da coletânea Situations, de 2010.
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