Duas cachorras vira-latas, uma saíra-escarlate, uma porca-espinho e uma besoura protagonizam “Mais um pouco aqui”, primeiro romance da autora colombiana María Ospina Pizano. Aparentemente aleatórias, suas histórias se entrelaçam com a nossa realidade humana, trazendo à tona, de forma sensível e bastante original, temas comumente espinhosos como migração, fronteiras, tecnologia, relacionamentos afetivos, natureza e ancestralidade.
Formada em História e doutora em Literatura Hispânica pela Universidade de Harvard, Maria Ospina Pizano, de 48 anos, é reconhecida por seus textos literários sobre violência, meio ambiente e memória na cultura colombiana atual. Professora de Cultura Latino-americana e Escrita Criativa na Universidade Wesleyan, nos Estados Unidos, a autora já havia conquistado boa repercussão em seu primeiro livro de contos, “Azares del Cuerpo” (2017), editado em Colômbia, Chile e Espanha. Agora, com seu romance de estreia, Ospina continua aclamada: “Só um pouco aqui” foi vencedor, por unanimidade, do Prêmio Nacional de Novela, concedido pela Biblioteca Nacional da Colômbia (2024), e do prêmio Sor Juana Inês de la Cruz, outorgado pela feira internacional do livro de Guadalajara, no México.
Inspirado em um poema do filósofo e poeta pré-colombiano Nezahualcóyolt, o título do livro antecipa um olhar sobre a impermanência, a conexão e a transitoriedade de tudo que é vivo, que o leitor experimentará de forma mais aprofundada ao longo dos capítulos. Ospina fala majoritariamente através de imagens, deixando que as associações da narrativa com a vida humana adentrem lenta e gradualmente a percepção do leitor, com a sutileza e a resiliência características dos processos naturais.
Como seria, por exemplo, a experiência de “cheirar e lamber despedidas” e “contar com pele e fibras os feitos de uma noite de peregrinação pelo concreto”, como os cães? Ou sair das profundezas do barro para “desdobrar as asas pela primeira vez e dispará-las sob o peso da armadura”, como os besouros? Ao convidar o leitor a imaginar o mundo sob a perspectiva dos animais, a autora inteligentemente apresenta um olhar estrangeiro capaz de desarmar barreiras culturais e políticas, despertando interesse e empatia genuínas de quem lê, independentemente de sua origem.
A trama tem como mote o processo de migração destes seres, seja por consequência da intervenção humana, seja apesar dela. Sobre esse assunto, o capítulo II, “Entre as copas das árvores, o desvio”, merece atenção especial, ao narrar a saga migratória da saíra-escarlate, que, ao sentir o fenômeno que cientistas denominam Zugunruhe — a “agitação da mudança” — é acometida por uma sabedoria ancestral que transgride as arbitrárias fronteiras sociopolíticas determinadas pelos humanos e se lança ao destino natural de sua espécie. Em sua viagem, o pássaro é impactado pelas luzes da cidade, pelas intempéries climáticas e pela escassez de alimento e abrigo causada pelo desmatamento. Sobrevoa imigrantes ilegais, ex-soldados que serviram à guerra, crianças presas em um centro de acolhimento de menores, pessoas que protestam contra a separação forçada de seus familiares. A viagem do pássaro também serve como lembrança de que olhar para o céu renova esperanças no futuro e a possibilidade de enxergar além do contexto atual.
Na trama, os humanos aparecerem como personagens secundários (a maioria sequer tem nome). Porém, aqueles que se permitem afetar pelo comportamento dos animais que os cercam conquistam lições importantes sobre a própria humanidade, elaborando processos de luto, abandono, traumas, desejos e expectativas.
Por fim, “Mais um pouco aqui” é uma provocação a um olhar para o planeta como espaço coletivo. Uma lembrança de que o ar que respiramos também serve aos cachorros e porcos-espinhos e sustenta o voo dos pássaros. Que a terra que pisamos não apenas é o berço dos besouros e das árvores, como a sepultura de tudo que dela se alimenta. E que, ao tentar abandonar nossa condição de animais por uma visão extrativista e individualista, não estamos construindo mais segurança e sim destruindo a nossa própria natureza livre, indomável.
* Flor Castilhos é jornalista e atriz
Autora: María Ospina Pizano. Tradução: Silvia Massimini Felix. Editora: Instante. Páginas: 176. Preço: R$ 74,90. Cotação: Bom.